Jornal de Opinião

São muitos os textos enviados para a Agência Ecclesia com pedido de publicação. De diferentes personalidades e contextos sociais e eclesiais, o seu conteúdo é exclusivamente da responsabilidade dos seus autores. São esses textos que aqui se publicam, sem que afectem critérios editoriais da Agência Ecclesia. Trata-se de um espaço de divulgação da opinião assinada e assumida, contribuindo para o debate de ideias, que a internet possibilita.

28/09/10

Raízes da pobreza... em Portugal

Além dos aspectos «técnico-cientifícos e políticos que interferem na luta contra a pobreza, existem aspectos éticos que, na perspectiva cristã, requerem mudanças profundas, que constituem um problema de cultura e de pessoal».

A reflexão fê-la Alfredo Bruto da Costa – presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz – na Semana de Pastoral Social, que decorreu, recentemente, em Fátima. Para este especialista em questões do foro social, com particular incidência cristã, o «muito que se faz visa apenas atenuar o estado de privação em que os pobres se encontram, a suprir as carências básicas – alimentares e outras --, mas não visam ajudar os pobres a reconquistarem um lugar na sociedade, de modo a terem meios de vida próprios e não precisarem da nossa ajuda».
Quando tantos andam a falar – mais do que a resolver – da pobreza, torna-se fundamental escutar quem, tendo um quadro de valores em função dos outros, nos pode ajudar a ir à raiz das questões e não a ficarmos pela rama dos episódios e soluções sem nexo. Ainda, neste verão, podemos, conversar com o professor Bruto da Costa e aferir das suas preocupações, anseios e projectos.

Cultura da pobreza – Mais do que uma noção sociológica a pobreza é, muitas vezes, um estado emocional, onde se entrecruzam imensos factores de natureza pessoal, familiar, social e, mesmo, nacional. Quantas vezes nos podemos acomodar a que outros façam aquilo que devia ser feito por nós mesmos. Nalgumas situações a pobreza é uma espécie de tortulho que cresce no lamaçal da subsidio-dependência. Um dos sinais mais reveladores desta mentalidade podemos vê-lo no (dito) rendimento social de inserção... pois o trabalho de emprego é menos bem pago, embora seja mais digno e honesto.
Se nos detivermos a analisar a acção de certos partidos políticos, movimentos sindicais, associações (mesmo eclesiais) e indivíduos poderemos ver que é sobre os pobres que constroem a sua imagem. Tirem-lhes o discurso do ‘pobrezinho’ – ignorante, carente ou pedinte – e esvazia-se a razão de ser desses fautores da pobreza... local, regional e nacional.
Urge elevar as motivações das pessoas, dando-lhes não só a cana para pescar, mas também o peixe para que tenham força para lançar a cana de pesca. Basta de dar o peixe a conta gotas, doseando a dependência... psicológica e emocional.

Pobreza cultural – Na medida em que formos dando capacidade cultural – tanto pela instrução como pela assumpção de si mesmos – os pobres farão o esforço de serem dignos de si próprios e não sofrendo da mera incapacidade de serem, dignamente, pessoas com direitos e deveres.
Nalgumas situações os ‘novos pobres’ – rótulo para pessoas que deixaram de ter meios suficientes de subsistência por perda do emprego, por endividamento ou por razões endógenas de condução da vida pessoal e familiar – abeiram-se da ajuda não-Estatal, embora paguem (ou tenham pago) os seus impostos, quase já não acreditam na providência do Estado social...
Quantas vezes é pela ignorância que certas forças vão ganhando eleições, continuando no poder com promessas vãs e fazendo dos outros peões de corrida para a sua promoção inocente mas não inocentada... Onde estão os ‘intelectuais’ da nomenclatura, quando cairam certas cortinas? Será que é exaltando a pobreza que seremos um país próspero e criador de riqueza? O colectivo só serve para ir adiando, pela negativa, a capacidade de cada um ser construtor do bem comum.

Desafios pela pobreza evangélica – ‘Bem-aventurados os pobres que o são no seu íntimo, porque deles é o Reino dos Céus’, lemos na apresentação dos princípios do «sermão da montanha», no evangelho de São Mateus. Daqui decorre, antes de tudo, um desafio para toda a vida sob a terra: ser intérprete da mensagem de Jesus, lutando contra a pobreza que ofende a pessoa humana e assumindo a prossecução de ser como Jesus, deprendido de tudo para ser servo de todos e em toda a parte.
Urge que cada cristão se assuma como cidadão de duas cidades: a terrena onde vive e se compromete e a celeste para onde caminha em fraternidade sincera e humilde.
Temos heróis e santos que nos ajudam, provocam e incentivam a viver nesta dinâmica sem ressentimentos, mas em caridade na sombra e sem palmas. Queira Deus que sejamos dignos de tão grandes antecessores e intercessores... na terra como nos Céus!

António Sílvio Couto
(asilviocouto@gmail.com)



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Turismo e evangelização

Maior atenção ao turismo religioso

A Igreja Católica em Portugal está atenta ao potencial do turismo religioso, alicerçado no rico património do país e, sobretudo, no forte apelo exercido por Fátima em todo o mundo. O turismo religioso é um fenómeno profundamente enraizado no povo português, que "sempre gostou de peregrinar". Aos responsáveis católicos, assinala, compete acolher este "desejo de se encontrar com o transcendente" e
"acompanhar todas estas pessoas", aproveitando uma oportunidade de evangelização. O Bispo do Algarve, D. Manuel Quintas, reforça esta ideia, frisando que no turismo está presente mais do que o desejo de descansar e muitos gostariam de "encontrar princípios inspirados de uma vida diferente". "A Igreja tem a missão de ir ao encontro destes anseios", assinala.
O turismo religioso, em particular, motiva a deslocação de cerca de sete milhões de pessoas a Portugal, anualmente e gera receitas na ordem dos 700 milhões de euros. É evidente e eficaz a componente religiosa: um católico dificilmente consegue ir à Terra Santa e regressar na mesma; posso afirmá-lo porque já lá fui 14 vezes com
grupos de peregrinos.

Oportunidades de Evangelização
Foi este o tema do "Encontro dos Secretariados Diocesanos da Mobilidade Humana", realizado no Algarve, de 5 a 8 de Julho 2010. Reflectiu-se sobre a pastoral das peregrinações e do acolhimento nos santuários portugueses e traçaram-se linhas de actuação conjunta para uma pastoral da mobilidade humana em geral, com relevo para a componente do turismo.
O dossier inclui ainda uma apresentação da Mensagem para o Dia Mundial do Turismo 2010, que se celebrará a 27 de Setembro, na qual o Vaticano apela a uma maior atenção ecológica por parte dos turistas de todo o mundo, lembrando o impacto desta indústria sobre o meio ambiente.
Dedicado ao tema da biodiversidade, o texto assinado pelo presidente do CPPMI, Arcebispo Antonio Maria Vegliò aponta "três grandes perigos, que requerem uma solução urgente: a mudança climática, a desertificação e a perda da biodiversidade". "Esta última está a desenvolver-se nos últimos anos a um ritmo sem precedentes", precisa.
A cidade espanhola de Santiago de Compostela, que celebra o Ano Jacobeo, acolheu mais de 12 mil participantes na edição 2010 da Peregrinação e Encontro Internacional Juvenil, que decorreram entre 5 e 8 de Agosto.
Segundo as actividades previstas para o encontro, dedicado ao tema "Como o Apóstolo São Tiago, amigos do Senhor", contaram com a participação de três cardeais, 10 arcebispos e 16 bispos.
O programa incluiu um total de 30 catequeses, 17 representações teatrais, 15 ateliês, 14 missas e orações, nove conferências, sete exposições e seis concertos.
Os eventos espirituais, formativos, culturais e lúdicos foram organizados em torno de seis blocos temáticos: "Espiritualidade e Pastoral", "História, arte e tradição", "Jovens e vocação", "Música e evangelização", "Doutrina Social da Igreja" e "Meios de comunicação ao serviço da nova evangelização".
O presidente do Conselho Pontifício para os Leigos, Cardeal Stanis?aw Rylko, presidiu a uma vigília de oração a 7 de Agosto e, no dia seguinte, à missa de encerramento.
Armando Soares smp
p.asoares@clix.pt


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Compasso do Tempo de 21 de Setembro de 2010

Uma pausa na luta pela sobrevivência (de dinheiro, de critérios de gestão, de repugnância perante mais impostos, de desilusão… pois, afinal de contas, o conceito de desenvolvimento é igual… ao anterior)…

Um momento de contemplação para escutar o Cardeal Newman, beatificado por Bento XVI no decurso da sua viagem pastoral à Grã-Bretanha: “Desde o dia em que me converti ao catolicismo (…) nunca senti uma única dúvida” (Histoire de mes opinions religieuses, trad., Phénix Éditions, Paris, 2000, p. 367 sgs).
Foi esse o estado de espírito do Papa, de acordo com o que opinei junto à comunicação social.
O Sumo Pontífice não viveu a mínima hesitação. Tinha consciência das dificuldades, das objecções naturais, provenientes de escândalos e de doutrinas, de um clima mental pouco coincidente e simpático. Gostem ou não… façamos justiça a quem, de peito feito, com maneiras e simplicidade de viver, visita a casa do vizinho. E no entanto, conforme ouvi num canal radiofónico, o Papa entrou “no terreno do inimigo”. Nunca aceitarei tal linguagem. Um gesto de pastoreio, de diálogo entre mentalidades religiosas diferentes, entre uma Igreja pouco atreita a Roma ou uma Roma que se manifestou familiar e igual, nunca poderá merecer essa avaliação.
Ao contrário, reconheço a posição de um servo inteligente e culto, vivendo o dever missionário de se acotovelar com pessoas e mentalidades bem diversas do ponto de vista religioso, e em cujo âmbito, as vítimas e os oprimidos sexuais poderiam arrogar-se a repugnância de não permitir a proximidade de um membro de uma família, que nem a sua sombra seria de admitir!
Diante de qualquer julgamento da sociedade, a Igreja só tem uma forma de proceder: prosseguir enquanto cidadã e serva do mundo; não ter complexos mas oferecer a defesa dos mais feridos; estender a mão; atravessar a via pública; ser cavalheiro nos bons modos, tomar a voz e ser “tradutor” dos que não conhecem “a língua”; conviver com todos, sem exclusão de ninguém, mesmo dela diferindo; afrontar a discordância e provar que a Missão não é a de uma empresa, mas a de um Senhor, Pai e Irmão!
Nos dias que correm não era urgente que o poder em Portugal se mostrasse com esta naturalidade de viver? Não deveria ser no último minuto… Há muito tempo que “ a tempestade e o pavor” deveriam ter sido anunciados!
Em matéria de justiça social e de cuidado pelos mais infelizes ainda não vi a excelência dos “treinadores”. De um dia para o outro é “o mesmo do mesmo”. E as “cotas” sobem.
A presença de Bento XVI na Grã-Bretanha marca a diferença. E o Papa nunca teve essa intenção histórica. Como cumprir os objectivos do Milénio!

D. Januário Torgal Ferreira

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O Reino de Deus é Reino de Vida

"Aquele que crê no Filho tem a vida eterna" (Jo 3, 36)

«Ao ressuscitar Jesus dos mortos, Deus venceu a morte, e n'Ele inaugurou definitivamente o Seu Reino. Durante a vida terrena, Jesus é o profeta do Reino e, depois da sua paixão, ressurreição e ascensão aos céus, participa do poder de Deus, e do seu domínio sobre o mundo (Ef 1, 18-21). A ressurreição confere à mensagem de Cristo, e a toda a sua acção e missão, um alcance universal. Os discipulos reconhecem que o Reino já está presente na pessoa de Jesus, e pouco a pouco vai-se instaurando no homem e no mundo, por uma misteriosa ligação com a Sua pessoa. Assim depois da ressurreição, os discípulos pregam o Reino, anunciando a morte e a ressurreição de Jesus; Filipe, na Samaria, "anunciava a Boa Nova do Reino de Deus e do nome de Jesus Cristo" (Act 8, 12). Paulo, em Roma, "anunciava o Reino de Deus e ensinava o que diz respeito ao Senhor Jesus Cristo"(Act 28, 31). Também os primeiros cristãos anunciam "o Reino de Cristo e de Deus" (Ef 5, 5). (RM O Reino de Deus destina-se a todos os homens, pois todos foram chamados a pertencer-lhe. Jesus aproximou-se sobretudo daqueles que eram marginalizados pela sociedade, dando-lhes preferência, ao anunciar a Boa Nova. No início do Seu ministério, proclama: fui enviado a anunciar a Boa Nova aos pobres (Lc 4, 18). Às vítimas da rejeição e do desprezo, declara: "bem-aventurados vós, os pobres" (Lc 6, 20). A libertação e a salvação, oferecidas pelo Reino de Deus, atingem a pessoa humana tanto nas suas dimensões físicas como espirituais. Dois gestos caracterizam a missão de Jesus: curar e perdoar.

A Igreja é sacramento de salvação. «Ela é força actuante no caminho da humanidade rumo ao Reino escatológico, é sinal e promotora dos valores evangélicos entre os homens. Neste itinerário de conversão ao projecto de Deus, a Igreja contribui com o seu testemunho e actividade, expressa no diálogo, na promoção humana, no compromisso pela paz e pela justiça, na educação, no cuidado dos doentes, na assistência aos pobres e aos mais pequenos, mantendo firme a prioridade das realidades transcendentes e espirituais, premissas da salvação escatológica» (RM 20)

Os gestos que anunciam o Reino de Deus são gestos de vida. "O ladrão não vem senão para furtar, matar e destruir. Eu vim para que as ovelhas tenham vida e para que a tenham em abundância" (Jo 10, 10) "Eu dou-lhes a vida eterna; elas jamais hão-de perecer; e ninguém as roubará da minha mão" (Jo 10, 28).
No discurso do pão da vida: "Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente" (Jo 6, 51a).
Na conversa com Nicodemos: "Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim deve ser levantado o Filho do homem, para que todo o homem que nele crer tenha a vida eterna" (3, 14-15)

A ressurreição confere à mensagem de Cristo, e a toda a sua acção e missão, um alcance universal. Os discipulos reconhecem que o Reino já está presente na pessoa de Jesus. Eles pregam o Reino, anunciando a morte e a ressurreição de Jesus. Na ressurreição, Cristo venceu a morte, surgindo para sempre a vida.

Armando Soares


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18/09/10

Compasso do Tempo de 17 de Setembro de 2010

Há “invisíveis sociais”: trabalhadores de toda a ordem, soldados desconhecidos, puros de coração, convictos e coerentes, desgraçados, esquecidos…

Ninguém dá por eles nem os próprios tentaram dar nas vistas. Basta-lhes a luz. Que culpas têm, se o olhar dos outros está virado para coisas menores?!
Há “invisíveis” só vistos por certos meios. Pelas convicções, pela fé, pelo cuidado, pela sensibilidade. Mas, apesar da desproporção reinante, há numerosíssimas pessoas e grupos que fizeram da fome dos outros, a sua preocupação.
Mesmo, no domínio da investigação científica, os problemas do salário e do despojamento, das expectativas e das obras a criar, dos jardins de infância e dos centros sociais, ocupam lugar cimeiro.
Se alguém, no decurso desta semana, teve a dita de participar nas “Jornadas Sociais” da Conferência Episcopal, ter-se-á dado conta do que comento.
Com o maior respeito por todos os comunicadores, “assino por baixo” a minha impressão: bastava ter ouvido o Professor Bruto da Costa, para um certo número de sábios e transformadores sociais ficarem bem mais pequeninos…!
A análise de princípios da doutrina social, desde os referentes à propriedade privada e ao seu não absolutismo, aos direitos negativos e positivos, à restauração da dignidade perdida e desrespeitada, ao primado dos mais abandonados e à denúncia do fatalismo da desgraça (perspectivas estas são basilares) foi suficiente para se concluir como o nosso “património moral” é posto de lado, por desconhecimento ou irresponsabilidade. Quando, eventualmente, se anunciam novas austeridades por motivo do crescimento da dívida pública (austeridades essas aconselhadas por peritos de outros países), temos todos a obrigação de perguntar: como será, cada vez mais, a vida de pessoas que foram forçadas em Portugal, quase desde sempre, a nada ou a pouco possuir?
Fora da época de publicidades e de promessas, não há tempo a perder para salvarmos com soluções verdadeiras, os “invisíveis sociais” mais injustificados.

D. Januário Torgal Ferreira


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14/09/10

Marcos de peregrinação à Terra Santa

Naqueles dias da primeira quinzena de Setembro de 2010 o grupo visitou os sítios marcados na sua identidade pela fé cristã.

Em Jope diante da casa de Simão, o curtidor, meditou a universalidade de Jesus Cristo para fora das fronteiras dos judeus, a partir do pedido de baptismo do Centurião de Cesareia marítima. Pedro resistiu mas deu um passo mais na aceitação de que Jesus Cristo é para todos. A dedicação desta última cidade, Cesareia, a César Augusto por Herodes, a presença de una estela com o nome de Pilatos e o sítio da prisão de Paulo continuam a gritar que Jesus Cristo teve uma história real no império romano e morreu sob Pôncio Pilatos.
No Monte do Carmelo a evocação do profeta Elias apontou para uma nuvenzinha branca a anunciar o fim da seca como chuva de graças de Nossa Senhora do Carmo por meio do seu Filho, para os sinais do seu escapulário (escudo protector) e para a Ordem do Carmelo. Logo tudo foi associada com as Teresas: de Ávila, a Teresinha, a Benedita da Cruz, mártir de Auschwitz, João da Cruz, Nuno Alvares Pereira e milhares de carmelitas, das suas várias ordens e da Ordem Terceira.
As pontuações marcantes de S. João de Acre giraram à volta de mudanças políticas seculares, guerras religiosas, Islão, Cruzadas, Regra da Ordem Militar dos Hospitaleiros de S. João de Jerusalém (de Acre, Rodhes, Malta e sua assistência aos peregrinos de Fátima). E o grupo ficou surpreendido pela história e fascinado perante os edifícios colossais visitados da Fortaleza/Quartel General/Convento/Hospital/Hospício de peregrinos da Terra Santa.
Em Nazaré o que mais fundo tocou ao grupo foi o “nada” donde “tudo” começou. Em aldeia de 50 habitantes de uma donzela de família e casa modestíssima e de um encontro escondido, o Altíssimo olhou, amou e nela “fez grandes coisas”; e tornou esta Terra santa por Jesus Cristo seu Filho ali ter começado a sua existência humana, filho de uma “escrava” do Senhor. Vem daí os milhões de peregrinos da fé em Cristo como nós, os milhões de edifícios e sítios cristãos, os livros e valores inultrapassáveis do património de fé cristã e as expressões de caridade e justiça no mundo. Sem Ele não tínhamos Terra Santa, Igreja das Bem-aventuranças do Monte, chamamento dos apóstolos junto ao lago de Tiberíades, Igreja do primado de Pedro nem a fé do Centurião em Cafarnaum que pede cura para o seu servo, a maior fé encontrada por Jesus em Israel. Nem teríamos encontrado nesses dias tantos grupos de peregrinos de Portugal: Madeira, Benfica, Guimarães, Vila da Feira além de outros grupos de família. Nem centenas de outros vindos das Américas, Europa ao Casaquistão…ao estremo Oriente.
Se em Nazaré “tudo” começou e em Belém numa gruta insignificante e em tantos lugares da Terra Santa “tudo” continuou, em Jerusalém tudo pareceu um dia vir a terminar no sepulcro. Mas não. As multidões de peregrinos apertavam-se por ali, acotovelavam-se, obrigaram-nos a esperar mais de uma hora para tocar e orar como eles apoiados na pedra do mesmo sepulcro vazio na sua Igreja; e obrigaram-nos a igual espera para a descer à Gruta da Igreja da Natividade em Belém onde nasceu. E com esse gesto dizem que “tudo” continua e continuará porque se trata do Filho de Deus saído do sepulcro em quem cremos. E isto apesar de por ali nos envolver a evocação de cenas de lágrimas e dor na Igreja de “Jesus chorou …”, na de o “Galo cantou”, e no chorar das mulheres que se compadeciam de Jesus na Via Dolorosa; e mais ainda na evocação das gotas de suor de sangue da gruta da oração de “Pai… faça-se a tua vontade” como já sua Mãe dissera :”eis… faça-se nesta tua serva a tua palavra”. Na Igreja da Santa Ana, celebramos a criação e nascimento da “Imaculada cheia de graça” que nos daria a Água curadora do seu Filho, mais redentora que a da piscina de Betesda ou das Ovelhas, hoje em ruínas.
O que Jesus “fez” no cenáculo ao fazer a refeição do seu corpo e sangue entregue e derramado por nós em oferta ao Pai, repetimo-lo nós, os dois sacerdotes do grupo, um em celebração dos seus cinquenta anos do dom sacerdotal dado por Cristo, e outro, o Pe José Luis Borga, com expressões musicais dos dons de que foi enriquecido. As celebrações do mandamento de “Fazei isto em memória de Mim” e da entrega pessoal sucederam-se no grupo em Jope, no Monte das Bem-aventuranças, no sítio de “Jesus chorou”, na Igreja de Santa Ana, onde a Mãe nascera, e em Belém onde Jesus nasceu da Virgem Maria; e ainda em dois sítios além Jordão, no Monte Nebo, o sítio da entrega final de Moisés ao “Eu sou” que foi seu guia e do Povo através do Deserto. E em sala de hotel em Wadi Mousa” (fonte de Moisés) ao lado de Petra onde as pedras obrigam a pensar nos planos de Deus desde tempos muito recuados do Povo do Deserto, simbolizados, como o guia indica, ao longe e no alto de monte, pelo que diz ser o túmulo de Aarão. Sítios estes que nos levam a religar o Messias, o Filho de Deus, ao mundo antigo dos Patriarcas e Profetas como Salvador único de toda humanidade.

Terra Santa, 11 de Setembro de 2010
Aires Gameiro, OH


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Enriquecer com as fragilizações alheias

Segundo dados mais ou menos credíveis nos dois últimos anos duplicaram os retalhistas de ourivesaria devidamente licenciados, levando-nos a crer que a compra e venda de ouro é um negócio em larga expansão e que estará a ser alimentada pela crise económica em curso.

De facto, bastará folhearmos os jornais, percorrermos as ruas de vilas e cidades e até consultarmos a internet para constatarmos a pujança deste negócio. Em maré de dificuldade (quase) se cumpre o ditado: vão-se os anéis, mas fiquem os dedos!
Não deixa de ser impressionante que, nos momentos de colapso social, há sempre alguém que faça fortuna e enriqueça com as fragilizações alheias, gerando situações de maior ou menor ‘injustiça’ entre os vendedores e os que adquirem as peças levadas à venda.
Sem pretendermos julgar seja quem for, ousamos colocar breves questões:
- Este surto de venda de ouro – muitas das peças com valor estimativo – não revelará uma atitude de desespero de pessoas, famílias... em desequilíbrio financeiro?
- Até onde irá a assumpção dos falhanços sem a correcção dos erros que os motivaram?
- Não haverá em muitas pessoas (individuais, famílias e colectivas) uma recusa em admitirem as fragilidades corrigindo as causas?
- Por que haverá ainda pessoas e famílias que continuam a fazer férias, endividando-se mesmo, sem olharem às dívidas não saldadas: será fuga às responsabilidades ou presenção de estatuto social falido?

1.Quando a verdade é humildade
Efectivamente, há pessoas que foram seduzidas pelo dinheiro barato – a crédito ou sob a forma de empréstimo – e que agora não conseguem fazer o estilo de vida sonhado ou pretendido... sem olhar a meios. Numa espécie de sensação de vazio vemos crescer o número daqueles/as que se julgam (ou julgaram) mais influentes só porque ostentavam roupa de certa marca, os adereços de estilo na moda ou ainda frequentando restaurantes e lugares que lhe dariam estatuto mas que não correspondiam à verdade daquilo que são hoje... mesmo que tenham pretendido sê-lo num passado recente.
Torna-se, por isso, urgente fazer com que as pessoas vivam segundo as suas posses e não à custa dos intentos alheios. Torna-se urgente educar os filhos/as para a realidade daquilo que são, de verdade, e não do que pretendem dissimular. Torna-se urgente viver na verdade, mesmo que isso implique uma maior humildade, antes que aconteça a total humilhação.

2. Pela humildade nos edificaremos
Somos um país que tem vivido acima das suas possibilidades, desde o mais simples dos cidadãos até às cúpulas de quem nos governa. Não podemos continuar a gastar para além das nossas posses. Precisamos de cultivar o espírito de poupança, que é muito mais do que o mero aferrolhar, mas antes ter tento nos gastos para amanhã. Precisamos de pensar que o dito ‘Estado social’ não é uma mera visão providencialista de protecção a preguiçosos, subsidio-dependentes ou a desempregados profissionais.
Torna-se importante também fazer sentir aos receptadores/compradores do ouro dos que estão em dificuldade, hoje, que não têm direito de sugar as memórias dos aflitos, mas antes têm de alimentar a confiança de quem, estando a passar por precariedades, deve levantar a cabeça, alimentando a esperança de recuperar a sua dignidade ofendida, mas não vendida.

Como viveremos, nós, cristãos, estes aspectos, tanto como necessitados de vender ou como (possíveis) compradores? Saberemos ter o necessário recato, tanto na venda como na compra?
Queira Deus fazer-nos aprender – como dizia São Paulo – a viver tanto na penúria como na abundância em desprendimento de tudo e de todos.

António Sílvio Couto
(asilviocouto@gmail.com)



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08/09/10

Septuagésimo aniversário da Diocese de Díli - Timor-Leste

Ocorre neste dia 4 de Setembro de 2010 o septuagésimo (70) aniversário da Diocese de Dili.

De facto, foi a 4 de Setembro de 1940 que o Papa de feliz memória Pio XII, através da bula Solmennibus Conventionibus erigia em Diocese as antigas missões de Timor Português até então dependentes da Diocese de Macau.
Na década dos anos 30 do século XX, o então Bispo de Macau, Dom José da Costa Nunes e o seu vigário geral particular para s Missões de Timor, o Reverendo Padre Abílio José Fernandes tinham estabelecido estruturas que mais tarde facilitariam a criação de uma nova de Diocese: consolidação das missões já existentes: Dili, Manatuto, Soibada, Alas, Oe-Cusse; abertura de novas Missões: Suro, aliás, Ainaro, Hatolia, Baucau e Ossu; abertura do Pré-Seminário em Soibada; consolidação da Escola de Preparação de Professores e catequistas; fundação de igrejas (Igreja matriz de Dili), a igreja de Ainaro; novas capelas (Atsabe, Balibó, Fatumaca,e Faubessi, Watolari, etc.); colocação de catequistas nas estações missionárias, consolidação e fundação de escolas do ensino primário (para o sexo masculino e feminino). Do Seminário de São José de Macau iam chegando novos sacerdotes que iam engrossando as fileiras dos missionários; a presença prometedora das irmãs Canossianas em Dare, Soibada e Manatuto. Por outro lado o bom clima sócio - politico proveniente do estabelecimento do Estado Novo favorecia o desenvolvimento das actividades missionárias nas Colónias. A capacidade diplomática do Bispo Dom José da costa Nunes em contactar e convencer as Autoridades Portuguesas de Lisboa, Macau e Timor Português, foram determinantes para a efectivação da erecção da Diocese de Díli.
Assim em Maio de 1940, a Santa Sé e a República Portuguesa assinaram a Concordata e o Acordo Missionário, instrumentos que criaram condições para o bom relacionamento entre o Estado Português e a Igreja e o benéfico desenvolvimento das Missões católicas no Ultramar Português. A 4 de Setembro desse mesmo ano, Sua santidade o Papa Pio XII, com a bula Solemnnibus Conventionibus criava várias dioceses no Ultramar (Angola e Moçambique) e a Diocese de Díli, na Ilha de Timor. Rezava assim a mencionada bula;
“Pio Bispo Servo dos Servos de Deus para perpétua memória.
Assinados, no dia sete de Maio deste ano, solenes acordos entre a Santa Sé e a República Portuguesa, e ratificada no primeiro dia seguinte mês de Junho, mais que tudo, se altera a jerarquia eclesiástica nas Colónias Portuguesas de África e Timor, Nós, que nada mais temos a peito do que promover o desenvolvimento do Catolicismo naquelas regiões distantes, depois de tudo maduramente pensado, e suprindo, em quanto é preciso, o consentimento de todos aqueles a quem interessa ou que julguem interessar-lhes, com a plenitude do nosso poder Apostólico, havemos por bem decretar o seguinte. [….].
IV. Finalmente a Ilha de Timor, na região dependente da república Portuguesa, até agora da jurisdição diocesana de Macau, separamo-la do território destas diocese, erigimo-la em nova diocese que se chamará de Díli, e constituímo-la sufragânea da Igreja Metropolitana de Goa, e sujeitamos os seus bispos pró tempore ao direito Metropolitano do Arcebispo de Goa e Damão.
Colocamos a sede prelatícia desta nova diocese na cidade de Díli, e erigimos em sé episcopal a igreja consagrada a Deus em honra de Nossa Senhora da Conceição, situada na mesma cidade”.
[…]
Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 4 do mês de Setembro, do ano do Senhor de mil novesentos e quarenta, segundo do Nosso Pontificado. = G.S.T.
Luís Card. Migliore, Secretário de Estado.
Fr. R.C. Cardeal Rossi, Secretário da S. Congregação Consistorial
A efectivação da erecção da Diocese de Díli teve lugar no dia 18 de Janeiro de 1941, data em que o então Vigário geral e Superior das Missões de Timor, Padre Jaime Garcia Goulart, fora nomeado Administrador Apostólico com faculdade de bispo residencial, com título de Monsenhor “ex officio”.
Nesse longínquo ano de 1941, a nova Circunscrição eclesiástica tinha as seguintes missões: Paróquia de Díli (Padre Porfírio Campos e Pe. Alberto da Ressurreição Gonçalves); Missão de Alas (Pe. António da Conceição Grebaldo Fernandes); Missão Ainaro (Pe. Norberto de Oliveira Barros e Pe. António Manuel Pires); Missão de Baucau (Pe. António Manuel Serra e Pe. Júlio Augusto Ferreira), Missão de Hatolia (Pe. Francisco Madeira); Missão de Manatuto (Pe. Diogo José d’Álmeida; Pe. Carlos Rocha Pereira); Missão de Oe-Cusse (Pe. Francisco António Durão Quintão; Pe. Norberto Augusto Parada); Missão de Ossu: Pe. Francisco dos Santos Afonso); Missão de Soibada: Pe. Januário Coelho da Silva).
Outros sacerdotes presentes na Diocese: Pe. Artur Basílio de Sá, ecónomo; Pe. Jacinto António Campos, secretário particular do Administrador Apostólico; Pe. Ezequiel Enes Pascoal, director espiritual e professor no Pré-Seminário de Soibada e na escola de Professores e Catequistas; Pe. Manuel Silveira Luís, professor; Pe. Jorge Barros Duarte, professor de Música; Pe. Abílio Caldas (timorense), professor.
Nesse ano de 1941, trabalhavam na Diocese 21 sacerdotes, 20 religiosas Canossianas e um irmão auxiliar. Nas Missões e estações missionárias ajudavam os missionários 28 catequistas. Exista 7 igrejas e 18 capelas de alvenaria e17 cobertas de colmo ou capim. No campo de ensino, as Missões regiam 3 Colégios de meninas (Dili, Manatuto, e Soibada, e um de rapazes (Soibada). Além do pré-Seminário e a escola de Professores e Catequistas havia 25 escolas de instrução primária. Os católicos eram 29.899. As perspectivas para o crescimento da Diocese eram animadoras, mas infelizmente, a 21 de Dezembro de 1941, o território iria ser palco de confrontos armados entre Australianos, Holandeses e Japoneses. Com a invasão de tropas estrangeiras e a ocupação de Timor Português pelos Japoneses de 1942 a 1945, a nova Diocese iria sofrer um duro golpe na sua incipiente história.
Nesta evocação histórica, queria agradecer a Deus pela criação da mui amada Diocese de Dili e recordar a memória de todos os valorosos missionários (sacerdotes, religiosas e catequistas) que lançaram os fundamentos da Diocese que hoje celebra setenta anos de Vida: Viva a Diocese de Díli! Parabéns! Congratulations! Dirgahayo!

Porto, 4 de Setembro de 2010.
D. Carlos Filipe Ximenes Belo
Administrador Apostólico emérito de Dili e Prémio Nobel da Paz 1996.



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07/09/10

Aposta na formação... dos trabalhadores

Segundo um estudo de uma empresa de gestão de recursos humanos, para 54 por cento dos portugueses, a formação é a regalia mais importante a seguir ao salário, sendo, posteriormente, apontados os benefícios de saúde e de flexibilidade de horário (14 por cento), o usufruir de viatura da empresa (6 por cento), de benefícios de reforma e dias de férias/tempo livre (4 por cento), da possibilidade de trabalhar à distância (3 por cento) e, por fim, do seguro de vida (um por cento).

O estudo atingiu cerca de 134 mil trabalhadores, dos quais mais de 16 mil portugueses.
Num mundo cada vez mais competitivo – onde a qualificação tem fundamental importância – é significativo que a aposta na formação seja um item de especial relevo... para a maioria dos nossos trabalhadores.

1.Conhecer direitos... investir na competência
Só com pessoas instruídas – tanto na sua área de actuação como no campo da convivência social e política – poderemos construir uma sociedade mais harmoniosa e cordata, pois, muitas vezes, a ignorância gera desconfiança e cria atavismos de medo e até de ressentimento.
Por certo não serão – com o devido respeito para os (ditos) beneficiários – os laureados das ‘novas oportunidades’ que irão competir na esfera de trabalhos que exigem estudo e amadurecimento... particularmente num contexto europeu.
De facto, há uma urgente necessidade – ao que parece os nossos trabalhadores já a consciencializaram – de investir na competência para que sejamos ainda melhores na competição. Acreditamos que será um investimento muito mais proveitoso do que aquele que tem sido feito em futilidades e em tentativas de afirmação pelas aparências. Também neste aspecto nós, portugueses, temos amadurecido – muitas vezes à custa das exigências vindas da União Europeia – e fomos deixando a teoria do ‘deixar tudo para a última hora’ e do lusitano desenrascanço barato.

2. Aceitar deveres... promover eficiência
O nível cultural do nosso país tem evoluído – não em conjunto simultâneo, mas por pequenas faixas da população – na tendência de não ficarmos na mera reivindicação máxima dos direitos, esquecendo os mínimos deveres: temos crescido na responsabilidade do equilíbrio entre estes vectores sociais, pessoais ou de grupo. Com efeito, vemos já os sindicatos baixarem a fasquia dos aumentos salariais; vemos crescer a convicção de que o trabalho é um direito com obrigações de justiça; vemos surgirem sinais de boa vontade entre os vários intervenientes no tecido sócio-político.
- Será na medida em que todos assumirmos as nossas responsabilidades que iremos construir um país mais justo, equitativo e próspero.
- Será na medida em que nos comprometemos – cada um segundo as suas obrigações – na construção de uma nação mais solidária que iremos vencer os desafios do presente e para o futuro.
- Será na medida em que formos unindo forças positivas que os ‘velhos do Restelo’ morrerão de tédio na praia do seu pessimismo... à custa da vitória da competência contra o oportunismo.
Havemos de conseguir!

António Sílvio Couto
(asilviocouto@gmail.com)



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Compasso do tempo - 03 de Setembro de 2010

“Os tempos de repouso” têm ocupações bem a preceito, longe do desgaste e das correrias. Mas os últimos longos dias não cumpriram essas normas.

No capítulo de mortes e de maleitas foi um rosário, coroado com a notícia da morte repentina do bispo Tomaz Nunes, auxiliar do Patriarcado e Presidente da Comissão Episcopal da Educação Cristã. Tinha-lhe falecido o único irmão, há uns meses. O seu ciclo familiar directo está já todo na mão de Deus. Deixou-nos com os mesmos 68 anos de D. António Ribeiro.
Já, no findar de Julho, tinha-me defrontado com o desaparecimento, em Aveiro, e por atropelamento, do Padre Manuel João dos Santos Cartaxo, juiz assessor no tribunal diocesano e sempre irmão próximo de D. António Santos, bispo emérito da Guarda.
Depois, e em crescendo, seguiram-se-lhe os mortos na estrada, em tragédias sem nome ou no âmbito dos piquetes heróicos dos bombeiros, a defender pontos do país em opressão, sob um futuro discutível no campo das certezas e das práticas consensuais.
Até uma palmeira, de raiz em agonia, feriu e vitimou pessoas em Porto Santo.
E, neste clima intranquilo, lá nos deixaram o Padre Alberto Azevedo, de gratíssima memória, da arquidiocese de Braga; o Major-General Comandante da Escola de Queluz, da G.N.R. e ficou ferido, em sobressalto, o Padre António Joaquim Dias, capelão-militar em Chaves, quando se dirigia, em automóvel, para assistir um casamento, estando ainda internado no Hospital de S. Marcos. Emigrantes, fora e dentro do país, viram os seus últimos dias neste quente mês. Dois guardas civis espanhóis e um intérprete foram assassinados no Afeganistão. E até o teólogo Raimon Panikar, paladino do diálogo entre concepções religiosas, se apagou nos fins de Agosto, com 91 anos.
Bem evoquei a Irmã Teresa de Calcutá, que teria festejado os cem anos em 26, se fosse viva. E, como enamorada dos “invisíveis sociais” deve ter recordado, no Céu, ao bispo Óscar Romero, assassinado em S. Salvador, no decurso de uma Celebração eucarística, que, volvidos trinta anos, é bem visível na terra salvadorenha, uma impunidade vergonhosa, consequência da amnistia de 1993, que fechou os olhos aos executores do crime.
E a expulsão dos ciganos em França?!
Não perco o optimismo, mesmo que um leitor se sinta constrangido com “verdades como punhos”, mais desejoso de meias tintas ou da conjura do silêncio. O anticlericalismo e a ausência da evangelização, entre várias motivações, são resultados de ambiguidades e de receios. Sejamos directos, e abjuremos as cautelas. Esta é uma resposta a alguém. No meio destes vendavais, caiu-me sob os olhos a notícia da morte da Maria Augusto Amado, a qual, há vinte e sete anos, criou o movimento “Vencer e viver”, para apoiar mulheres vítimas do cancro da mama. Há mais estrelas a brilhar!
Saudade, Homenagem e Comunhão! Nunca haverá desaparecidos!

Lisboa, 3 de Setembro de 2010
Januário Torgal Mendes Ferreira



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A justiça dom de Deus para todos

A justiça de Deus está manifestada mediante a fé em Jesus Cristo (3, 21-22)

Este ano de 2010. o Papa acentuou sua mensagem da quaresma sobre o tema da justiça partindo da citada afirmação Paulina.
A justiça implica em primeiro lugar «dar a cada um o que é seu», segundo a expressão de Ulpiano, jurista romano do século III. Que é que o homem mais precisa para que possa chamar seu? O homem vive daquele amor que só a fé pode comunicar pois foi criado à sua imagem e semelhança.
Segundo o Evangelista São Marcos referindo palavras de Jesus o que sai do homem é que o torna impuro como o interior do seu coração é que saem os maus pensamentos. Para alguns podemos entrever reacções relativamente ao alimento, individuando a origem do mal numa causa exterior ao homem (o alimento) Visto que a justiça vem de fora, para
que haja justiça é suficiente remover as causas exteriores que impedem a sua actuação: Esta maneira de pensar é ingénua e míope. Diz Bento XVI: «injustiça fruto do mal não tem raízes exclusivamente externas;
mas tem origem no coração do homem onde devemos encontrar os germes de uma misteriosa convivência com o mal.» O homem torna-se por um impulso profundo por uma força de gravidade que o mortifica na capacidade de entrar em comunhão com o outro, por causa do egoísmo.

"No coração da sabedoria de Israel, encontramos um laço profundo entre a fé em Deus que "levanta do pó o indigente" e fez justiça ao pobre, e de maneira especial ao pobre, ao estrangeiro, ao órfão e à viúva".
Ex.29, 12-27)
Dar ao pobre, para um israelita é nada mais nada menos a retribuição que se deve a Deus, que teve piedade pela miséria do seu povo.
O anúncio cristão responde positivamente à sede de justiça do homem,
(Paulo aos Rom)
"Converter-se a Cristo, acreditar no Evangelho, significa precisamente isto: sair da ilusão da auto-suficiência para descobrir e aceitar a própria indigência - indigência dos outros e de Deus, indigência do seu perdão e da sua amizade".
De Jesus Cristo Redentor recebemos muito mais do que aquilo que poderíamos esperar receber. Fortalecido por esta experiência, o cristão é levado a contribuir para a formação de sociedades justas onde todos recebam o necessário para viver segundo a própria dignidade de homem e onde a justiça é vivificada pelo amor.
Quaresma, conversão, enfrentar o pecado, fazer justiça ao pobre a marginalizado, são modos de anúncio e meio de transmitir a fé. Assim nos ensinou o nosso querido Papa Bento XVI na Quaresma 2010

Armando Soares, da smbn


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Ler Caim

Vejo o último livro de José Saramago, Caim, em quiosques, ao lado dos jornais desportivos e das revistas da crónica social. Há quem o leia nos comboios. Em Espanha, vejo-o nos escaparates das livrarias, com a indicação de que já vai na quarta edição.

Como sucede com outras obras do nosso prémio Nobel, as referências bíblicas neste livro são constantes. Nota-se claramente que o autor que dar uma imagem do Deus bíblico como um deus cruel, vingativo, rancoroso e “má pessoa”, como escandalosamente proclamou na polémica apresentação do livro. «A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele» - é a frase que pode resumir o conteúdo da obra e que surge na badana da contra-capa.
Num tempo em que a incultura geral a respeito da Bíblia e do cristianismo se difunde cada vez mais, é natural que a maioria dos milhares de leitores de Caim não tenham capacidade para dele fazer uma leitura crítica e que a imagem do Deus bíblico com que fiquem depois dessa leitura seja mesmo a do tal deus cruel, vingativo, rancoroso e “má pessoa”. Que essas pessoas só por este meio, e não pela própria leitura da Bíblia, conheçam (ou desconheçam) esse Deus. Foi este grave perigo, agravado pela grande difusão do livro (explicada pelo seu mérito literário, que não discuto, mas também pela polémica), que me levou a escrever estas breves linhas. Apesar de estar longe de ser crítico literário ou exegeta bíblico, e sabendo que outros o poderiam fazer melhor do que eu, procuro tentar atenuar um pouco esse perigo, confrontando o deus do livro de Saramago com a verdadeira face do Deus bíblico.
Para descobrir essa face, não é necessário ser especialista. Basta ler a Bíblia na sua integralidade, sem nos determos num ou noutro episódio desinserido desse contexto global. Em todo o caso, algum esforço de interpretação deve ser feito e podemos socorrer-nos de muitos e bons auxílios. A mim, serviu-me de ajuda para escrever este texto uma excelente edição da Bíblia publicada em fascículos pela revista italiana Famiglia Cristiana, La Bibbia per la Famiglia, coordenada por Gianfranco Ravasi, actual presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, e repleta de muitos e completos comentários, uns dos mais reputados biblistas, outros de intelectuais e artistas italianos de vários quadrantes. Destes comentários se vê, além do mais, que a Bíblia inspirou ao longo da história da cultura ocidental, e continua a inspirar, pensadores e artistas; é, na expressão de Manoel de Oliveira na mensagem que dirigiu a Bento XVI, um “tesouro inesgotável da nossa cultura europeia”. Uma inspiração que, independentemente da maior ou menor ortodoxia das interpretações desses pensadores e artistas, nunca poderia vir de uma imagem tão grosseira e superficial como a que transparece no livro de que nos ocupamos.
Um primeiro esclarecimento sobre a interpretação da Bíblia se impõe: o que distingue a Revelação e a inspiração divina, por um lado, e, por outro lado, os limites humanos da forma de expressão, ligados a um contexto cultural e histórico específico e datado. A Bíblia contém a Revelação divina, a manifestação do mistério de Deus e da sua vontade. Neste sentido, o texto sagrado é fruto de uma inspiração que traduz a acção do Espírito Santo. Mas isso não significa que toda a sua expressão literal seja “ditada” por Deus sem mediação humana. Apesar da inspiração divina, o autor humano, com os limites próprios do seu tempo e da sua cultura, não se anula. Nisto se distingue a concepção da interpretação bíblica da visão islâmica prevalente sobre o texto do Corão, concebido na sua literalidade como Palavra de Deus incriada (donde decorrem muitos dos problemas da sua adequação à modernidade).
Há que saber discernir o que é fruto dessa inspiração divina, por um lado, e o que reflecte esses limites humanos, por outro lado. Há que saber distinguir, também, os vários géneros literários do texto bíblico, que vão da poesia à alegoria, à máxima moral ou à narração histórica, por vezes entrelaçados, e interpretar esse texto tendo em conta o seu género literário do trecho em questão.
Há que ter presente que a Revelação se vai desenrolando progressivamente e que, para os cristãos, atinge a sua plenitude em Jesus Cristo. O Verbo de Deus é Jesus Cristo, a Revelação completa de Deus é Jesus Cristo, e o texto sagrado é uma preparação e um meio para chegar a Jesus Cristo, não um fim em si mesmo. Também neste aspecto a visão da Revelação cristã se distingue da visão da Revelação islâmica prevalente. Daí a importância, para a perspectiva cristã, de nunca deixar de ler um qualquer trecho bíblico à luz do seu contexto global e, em particular, de ler um qualquer trecho do Antigo Testamento à luz do Novo e à luz da mensagem de Jesus Cristo. Porque a Revelação se vai desenrolando progressivamente na História e só atinge a sua plenitude em Jesus Cristo, pode um trecho do Antigo Testamento desinserido desse contexto global dar uma visão de Deus e da sua vontade que se revela, à luz desse contexto global, incompleta ou parcial. Não se trata de desligar o Novo do Antigo Testamento, mas de os ler em conjunto, como Revelação progressiva.
São estes princípios que José Saramago não considera no seu livro. As passagens do Antigo Testamento a que se refere para demonstrar a sua leitura de um deus cruel, invejoso, vingativo e rancoroso são desinseridas do contexto global da Bíblia. Mas até independentemente dessa desinserção, parece-me que são distorcidas no seu sentido mais evidente. Vejamos porquê.
São vários os episódios bíblicos de que se serve Saramago para ilustrar essa visão de um deus tirânico e rancoroso. O episódio do sacrifício de Isaac solicitado por Deus a Abraão, seu pai, é apresentado como exemplo da crueldade de um deus que chega a exigir o assassínio de um filho para afirmar o seu poder. A destruição de todos os habitantes de Sodoma e Gomorra é apresentada como exemplo de um deus injusto, que não se detém diante do castigo máximo de crianças inocentes. A destruição da torre de Babel é apresentada como exemplo de um deus invejoso, que não suporta a rivalidade dos méritos do engenho humano. A história de Job, eivada de sofrimentos absurdos e injustificados, revela também a injustiça desse deus e a sua insensibilidade perante o sofrimento humano. Os massacres dos inimigos dos hebreus por ordem divina, como “violência sacra”, relatados no livro de Josué também exemplificam essa crueldade. E assim também o dilúvio. Noutro plano, a geração incestuosa dos filhos de Lot é apresentada como sintoma do desregramento moral mais extremo (a Bíblia como “manual de maus costumes”, segundo a expressão também célebre da polémica apresentação do livro).
É fácil identificar a distorção da mensagem subjacente a estes episódios, em si mesma e também porque desinserida do contexto global da Bíblia, o contexto do Antigo e do Novo Testamentos.
Do episódio do sacrifício de Isaac não deve retirar-se que Deus tenha verdadeiramente querido esse sacrifício. Deus quis pôr a prova a radicalidade da fé de Abraão e este demonstrou que o seu amor a Deus era superior ao mais nobre e legítimo dos afectos humanos. Mas Deus não aceitou esse sacrifício e daí pode concluir-se que o amor radical a Deus não é incompatível com o amor filial. Daí também decorre que a prática de sacrifícios humanos tenha sido condenada pelos profetas, ao contrário do era corrente noutros povos, ou do que se verificou em culturas de várias épocas.
À luz do Novo Testamento, os cristãos associarão este episódio à frase de Jesus (que retoma a do profeta Oseias) “Prefiro a misericórdia ao sacrifício”(Mt.,9,13); ou seja, mais do que qualquer sacrifício, a Deus agrada o amor, nas suas dimensões horizontal e vertical, para com Ele e para com o próximo. E os cristãos também associarão este episódio do sacrifício de Isaac ao da própria morte de Jesus, quando é o próprio Deus que se entrega em sacrifício por amor da humanidade. É difícil conceber exemplo mais eloquente do amor de um Deus, a inversão mais perfeita de uma qualquer imagem de um Deus que cruelmente exige sacrifícios humanos. E não se pense (como também faz Saramago num outro livro, O Evangelho segundo Jesus Cristo) que o sacrifício de Jesus também manifesta a crueldade de um pai que exige a morte do próprio filho, porque o Pai e o Filho são um único Deus e a entrega de Jesus pela humanidade é a entrega do próprio Deus na pessoa do Filho.
Também é distorcido o sentido do episódio da destruição da torre de Babel. Não se trata de derrubar um fruto do engenho humano que rivalizaria com Deus. Trata-se, antes, de contrariar as lutas interétnicas e pela afirmação da identidade que geram a “confusão” e a divisão contrárias à unidade original da família humana. Em nenhum outro texto, religioso ou não, podemos encontrar, como na Bíblia, uma exaltação tão nítida da dignidade humana, da pessoa criada, segundo o Génesis, «à imagem e semelhança de Deus», a que se refere o salmista nestes termos: «Quando contemplo os céus, obra das tuas mãos, a Lua e as estrelas que Tu criaste; que é o homem para te lembrares dele, o filho do homem para com ele te preocupares? Quase fizeste dele um ser divino; de glória e de honra o coroaste.» (Sl.,8,4-6). E essa exaltação do ser humano atinge o seu auge no Novo Testamento, quando Deus se faz homem e dá a vida pela humanidade. O Deus bíblico não inveja, pois, as qualidades humanas, antes as exalta de forma suprema.
Quando o autor de Caim transmite a sua indignação diante de um deus que destrói Sodoma e Gomorra sem poupar as crianças inocentes parece esquecer que é precisamente a justiça de Deus que nesse relato se quer sublinhar, depois de nele se afirmar, com insistência, que a existência de um qualquer inocente entre os habitantes dessas cidades teria impedido essa destruição.
O episódio da geração incestuosa dos filhos de Lot não significa qualquer legitimação do incesto, vigorosamente condenado entre os hebreus como entre outros povos. Simboliza, antes, a afirmação da origem impura de dois povos historicamente hostis a Israel, os Moabitas e os Amonitas.
Saramago parece que também não compreendeu em toda a sua profundidade o livro de Job, que já muitos consideraram uma das obras-primas poéticas e espirituais não apenas da Bíblia, mas também da literatura de todos os tempos. Na angústia e no grito de Job podem os homens e mulheres de todas as épocas e culturas identificar as suas amarguras e revoltas. No sofrimento de Job ecoa o sofrimento de todos os homens e mulheres. Nele se retrata a incompreensão diante do mistério da dor humana e do silêncio de Deus diante dessa dor. Perante este silêncio, Job dirige-se a Deus em termos que quase atingem a irreverência, ou mesmo a blasfémia. Nestas imprecações muitos revoltados contra Deus se reconhecerão. Perante este mistério do sofrimento de um inocente e do silêncio de Deus, o autor bíblico sublinha, antes de mais, a rejeição de uma visão retributiva que associava o sofrimento de uma pessoa ao castigo pelos seus pecados (rejeição que será confirmada por Jesus no episódio da cura do cego de nascença a quem manda depois lavar-se na piscina de Siloé – Jo.,9,7). E sublinha, no final do poema, que por detrás do aparente silêncio de Deus está um seu desígnio harmonioso de amor e justiça que escapa ao conhecimento humano. Os cristãos também associarão esta mensagem ao sentido do abandono e morte de Jesus, onde Deus se identifica plenamente com o sofrimento humano, neste se incluindo, até, a sensação de silêncio e de abandono da parte de Deus. No abandono e na morte de Jesus encontra sentido, de forma plena, o sofrimento humano, como uma chave e um caminho para a Ressurreição.
Um dos exemplos mais evidentes das limitações do autor humano da Bíblia na sua percepção da natureza de Deus encontra-se precisamente nas descrições do livro de Josué a respeito dos massacres dos inimigos de Israel apresentados como um mandato divino. Hão-de compreender-se à luz de uma preocupação de não contaminação da fé do povo de Israel com a de outros povos idólatras. Mas é evidente que se trata de uma percepção incorrecta e não esclarecida, fruto de uma mentalidade historicamente datada (influenciada pelos hábitos guerreiros dessa e de muitas outras épocas da História), que contrasta com aquilo que a Bíblia no seu todo nos diz a respeito da natureza de Deus. Deus serve-se também destes instrumentos imperfeitos de uma Revelação que se vai desenrolando de forma progressiva. Comenta a este respeito Gianfranco Ravasi: «…a justificação principal destas e de outras páginas “difíceis” do Antigo Testamento há-de procurar-se na particular visão da Revelação bíblica. Deus não se manifesta em abstracto, nem aparece nos céus puríssimos, antes no emaranhado da história humana. Ele desvela a sua vontade através de uma série de acontecimentos humanos nos quais se esconde e opera. Deve, por isso, tolerar os limites humanos, passar através das vicissitudes humanas e do seu desenrolar lento e muitas vezes tormentoso, deve actuar num tempo e num povo bem precisos, à espera de conduzir a humanidade em direcção a um horizonte mais alto».
A insistência do Antigo Testamento nos castigos e punições divinas, muitas vezes com acentos de grande severidade, pode chocar a mentalidade contemporânea. Já não será assim para a mentalidade de outras épocas, tão sensível à justiça como à misericórdia de Deus. Também não será assim em povos vítimas da injustiça humana que esperam de Deus a correcção dessa injustiça e dos defeitos da justiça humana, como se verificava com o povo hebreu e como poderá verificar-se com muitas outras pessoas e povos de várias épocas e culturas. Há que salientar, por outro lado, que os castigos divinos são sempre em função da Salvação, um instrumento em relação à Salvação. Mas uma visão completa da Bíblia permite reconhecer que a misericórdia de Deus ultrapassa e supera, sem a anular, a sua justiça.
É assim já no Antigo Testamento. Apesar das infidelidades humanas e das punições, Deus permanece fiel à sua Aliança, que vai sempre renovando. Desde logo na história de Caim, a quem não castiga apesar do seu crime, o que significa que continua a acreditar no ser humano, apesar da sua tendência para o conflito fratricida. Depois do dilúvio (a que também se refere Saramago no livro sobre que nos vimos debruçando), Deus restabelece a sua Aliança com a humanidade, abençoando-a e declarando (com alusão ao episódio inicial da morte de Abel) que pedirá contas da vida de cada homem a cada um dos seus irmãos (Gen.,9,1-7) - uma afirmação do valor da vida humana que contrasta com qualquer visão de um deus belicista.
Nos salmos, são constantes as referências ao Deus «clemente e compassivo, lento para a ira e rico em misericórdia», que não nos castiga segundo as nossas culpas. Assim, por exemplo, no Salmo 103 (8-14): «O Senhor é misericordioso e compassivo, é paciente e cheio de amor. Não está sempre a repreender-nos, nem a sua ira dura para sempre. Não nos tratou segundo os nossos pecados, nem nos castigou segundo as nossas culpas. Como é grande a distância dos céus à terra, assim são grandes os seus favores para os que o temem. Como o Oriente está afastado do Ocidente, assim Ele afasta de nós os nossos pecados. Como um pai se compadece dos filhos, assim o Senhor se compadece dos que o temem. Na verdade, Ele sabe de que somos formados, não se esquece de que somos pó da terra.» Ou no Salmo 30 (6): «A sua indignação dura apenas um instante, mas a sua benevolência é para toda a vida. Ao cair da noite vem o pranto; e, ao amanhecer, volta a alegria».
No livro do profeta Oseias, Deus é comparado a um esposo fiel que assim se mantém apesar da infidelidade da esposa, o povo de Israel. E também o profeta Isaías compara o amor de Deus para com o seu povo ao de um esposo fiel: «Ainda que os montes sejam abalados e tremam as colinas, o meu amor por ti nunca mais será abalado, e a minha aliança de paz nunca mais vacilará. Quem o diz é o Senhor, que tanto te ama.» (54, 10) Noutros passos o amor de Deus é comparado ao de um pai, ou mãe, para com os filhos, que se mantém apesar da infidelidade destes (Os.,11,1-4; Is.,46,3; Sl. 131,2).
Mas é no Novo Testamento que a verdadeira dimensão da misericórdia de Deus se descobre, que Deus-Amor se revela em plenitude. Basta lembrar as parábolas do filho pródigo (que o pai – Deus – recebe de braços abertos, apesar da sua reprovável conduta), da ovelha perdida (por quem o pastor – Deus – deixa todas as outras) ou do operário da última hora (que recebe tanto como os outros, pois para a misericórdia de Deus não existem cálculos). Ou o episódio da mulher adúltera. Ou os mandatos de amor ao inimigo e de perdão «setenta vezes sete». Ou o perdão de Jesus ao bom ladrão («Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso») e aos seus algozes («Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem»). E a paixão e morte de Jesus, expressão máxima do amor de um Deus que se entrega pela redenção da humanidade. É, como já disse, à luz desta Revelação de Deus-Amor em Jesus que todas as imagens de Deus do Antigo Testamento encontram o seu sentido, completando-as e aperfeiçoando-as.
Caim fala da história dos homens como «a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele». E diz-se no final do livro: «A resposta de deus não chegou a ser ouvida, também a fala seguinte de Caim se perdeu, o mais natural é que tenham argumentado um contra o outro uma vez e muitas, a única coisa que se sabe de ciência certa é que continuaram a discutir e que a discutir estão ainda». As imprecações de Saramago contra Deus não o levam a exaltar o homem, pois parece que também tem consciência das maldades de que este (representado por Caim que mata Abel) também é capaz, maldades de que também fala em muitos dos seus livros e escritos. Caim e Deus discutem ao longo do livro e «continuarão a discutir». Parece que as hipóteses de diálogo não estão de todo afastadas… Parece que o desentendimento poderá ser superado um dia… Oxalá que seja assim com Saramago. Que, apesar das suas blasfémias, possa ainda ver a verdadeira face de Deus-Amor.

Pedro Vaz Patto


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