Jornal de Opinião

São muitos os textos enviados para a Agência Ecclesia com pedido de publicação. De diferentes personalidades e contextos sociais e eclesiais, o seu conteúdo é exclusivamente da responsabilidade dos seus autores. São esses textos que aqui se publicam, sem que afectem critérios editoriais da Agência Ecclesia. Trata-se de um espaço de divulgação da opinião assinada e assumida, contribuindo para o debate de ideias, que a internet possibilita.

31/01/11

Uma questão de nível ou plano de entendimento

Por estes dias aprendi algo de muito simples, embora seja – paradoxalmente – complexo: ‘é tudo uma questão de nível ou de plano em que nos encontramos’.
Sem querer dar lições seja a quem quer que possa ser, partilho uma breve constatação um tanto pessoal: se não estivermos no mesmo nível ou plano – de linguagem e/ou de compreensão – tudo se pode confundir.

De facto, quando estamos no mesmo plano ou nível quase tudo faz sentido e (até) é compreensível. Novamente reportando-me a vivências pessoais recentes, ouso referir: quando vemos as pessoas e/ou os acontecimentos ao nível cristão – segundo os valores do Evangelho, que é muito mais do que uma mera visão religiosa! – corremos o risco de não percebermos outros entendimentos, perspectivas, comportamentos... ou comprimentos de onda. Mas se, por momentos, nos colocamos ao nível ou no plano mundano até aquilo que era sincero, sem malícia ou mesmo ingénuo pode ganhar uma outra leitura... talvez a mais desonesta, indecente ou mesmo maliciosa. Com efeito, quando estamos (ou estivermos) no plano divino – isto é, tendo o nível psicológico ou espiritual cristão por plano de vida, de pensamento ou de vivência – entendemo-nos, podemos falar e não haverá (talvez) intenções ou julgamentos. Por isso, pela minha experiência mais recente digo: se não estivermos no mesmo nível ou plano... com o/a nosso/a interlocutor/a não adianta continuarmos a querer falar, a dizer seja o que for... pois iremos – talvez inconscientemente – magoar-nos, ofendendo-nos e desiludindo-nos uns aos outros.

= Subir ou descer o nível?
Por vezes, sobretudo entre pessoas que se conhecem bem, é habitual ouvir a expressão: ‘não desçam o nível’, querendo com isso manter a conversa numa linguagem adequada aos intervenientes. Com efeito, há pessoas que recorrem à brejeirice, à insinuação e à ambiguidade por forma a tentarem criar ambiente de à-vontade, que, na maior parte das vezes, não é mais do que uma certa frivolidade... usando anedotas, piadas ou até ditos de natureza codificada... segundo o seu ambiente – note-se o recurso ao calão em certos sectores – normalmente excluindo quem não compreende ou quem está (ou possa estar) noutro nível cultural, de instrução e, sobretudo, de compreensão.
Deixem que apresente um exemplo do nosso colectivo nacional: certos candidatos – sobretudo os derrotados – à Presidência da República fizeram descer o nível tanto das ideias como da comunicação, podendo ser os culpados da taxa de abstenção de dois em cada três inscritos nos cadernos eleitorais... O nível desceu muito (a)baixo da instrução e roça já o quadro da tumba da nossa capacidade de mobilização cívica.

= Acertar planos para compreender níveis... culturais
Por outro lado, é confrangedor ver o rápido afastamento de tantas pessoas – homens, mulheres (mães e avós), jovens e crianças – da vivência (é muito mais do que a (dita) prática) da fé cristã católica. Famílias inteiras desmobilizam-se, invocando múltiplas razões. Parece que uma das principais razões é o desfazamento entre os níveis de evangelização e o recurso aos ritos. Muitas vezes estes têm mais um colorido tradicional do que um esclarecimento amadurecido. Por vezes, certas festas sociais têm (até) a cobertura religiosa, ficando-se por um certo verniz sobre caruncho, isto é, tira-se todo o proveito da exibição no palco da Igreja mas esquecem os fundamentos de tal celebração. Poderemos declarar ‘novos’ sacramentos: os sociais... sem fé, sem razão mínima para serem celebrados e com muita festa à guiza de promoção da ignorância... de maior parte dos agentes e actores. Não pensem que são só os casamentos e até os baptizados. Há muitos outros rituais que enfermam de desnível cristão... em Igreja católica.
É um facto que a cristandade profana se desenrola no nível mundano, usando conceitos e tiques religiosos de conveniência, embora o nível da fé seja subvertido por boas intenções mal enquadradas... neste Portugal em maré de neo-paganização e de privatização da fé.
Pelo muito que devemos aos nossos antepassados – heróis e santos – com fé e determinação em darem novos mundos ao mundo, temos de reflectir sobre a desadequação entre o que dizemos e aquilo que fazemos... elevando o nível e a compreensão.
Numa palavra: coerência e acerto no nível precisam-se!

A. Sílvio Couto
(asilviocouto@gmail.com)


VER [+]

Ao Compasso do Tempo - Crónica de 28 de Janeiro 2011

Relendo “A arte da guerra” de Sun Tsu (capítulo “Manobras militares”, nº24) relembrei a recente campanha presidencial: “Gongos e tambores, estandartes e bandeiras, são os meios usados para centrar os olhos e os ouvidos da hoste num único ponto”.
Assim foi. Aguardemos outros figurinos e pedagogias: diálogo aberto, comunicações com comentários e sugestões, análises dos problemas locais, intervenções muito mais populares, dando voz a quem nunca é ouvido… “Tambores, estandartes e bandeiras” são meios coadjuvantes em torneios e batalhas. Também em romarias e comícios. Também nos “banhos de multidão”, conferindo som e cor e arrancando-nos à sonolência de rotinas.
Mas já demos tantos passos em frente, nesta coluna avançada da democracia, que era altura de um diferente estilo de avançar pelo mundo e escutar as vozes (várias e opostas) de mulheres e homens, sonhando um país outro, sendo-lhes ofertado a possibilidade rara de tocar na “camisola dos novos deuses, que, por um dia, se afastaram do “Olimpo” e se passearam no meio das turbas, acenando-lhes uma certeza, sossegando-os das tragédias, prometendo-lhes uma vida sem fim.
Há ar de “liturgia” e de festa campestre, de peregrinação e de devoções ao “orago, de opas de irmandade e de jantares pascais.
Só com esta diferença abissal: na laicidade não há o incenso da paz, a serenidade e a contemplação, a convicção como atitude grata, as dúvidas sempre à busca do indiscutível. A laicidade (esta) imita mas não consegue tributar-nos a humildade, a reconciliação, as vidas dos outros, a marcha pelo deserto e o vislumbrar da Terra Prometida.
Nem pelo “Cartão de Cidadão” houve o facilitar da nossa opinião… Era importante ouvir e responder. Quem entra em certas campanhas tem bombos e bandeiras. É muito vulgar. O mais difícil e desejável era juntar a voz à dos que sugerem, perguntam, discordam, se escandalizam. Era obrigação de primeira água deslindar soluções para as prioridades da República. Bem sei do círculo apertado do ministério presidencial. Mas como consegui a estabilidade se há a desconfiança? Como curar as dívidas e a derrocada financeira? Como fazer justiça aos jovens que não encontram um lugar ao sol?
Como explicar que os baixos salários não podem ser encurtados, sendo obrigação do mais primário dever do Estado que os gestores das suas empresas não sejam pagos com o que foi desviado dos salários mais reduzidos (os tais, que ainda têm de emagrecer).
Ouvi bombos. Vi bandeiras. Não ouvi o saber e as alturas de Estado, que bem queria! Urge semear confiança! De que forma? Em quê? Em quem?

28 de Janeiro de 2011
Januário Torgal Mendes Ferreira



VER [+]

27/01/11

Oportunidades de resposta para novas situações

Os problemas e as dificuldades, hoje verificadas a todos os níveis, pedem uma especial atenção aos responsáveis, em cada campo e situação, para que aproveitem as oportunidades que então surgem. A partir delas se responderá melhor. Os problemas que aguardam resposta estão na sociedade, na família, na escola, na vida empresarial e, também, na comunidade cristã, em todo o lado onde há vida.
É sobre as comunidades, de que agora tanto se fala, ao repensar para renovar a acção da Igreja, que oriento a minha reflexão, na esperança de que se atenda mais e melhor às oportunidades que, não raro, são pouco atendidas e mal aproveitadas. O dever de servir e a criatividade pastoral exigem esta atenção.
Nas comunidades e na Igreja em geral há mais gente repetitiva que inovadora. Ora, as tradições religiosas vão perdendo força, o passado deixou de ser dinâmico e de apego generalizado, as respostas repetidas e pouco reflectidas são normalmente estéreis. Deste modo, o ângulo estreito de percepção da realidade empurra para as desilusões e dificulta um empenhamento persistente, sério e que envolva as pessoas.
Dá-se, hoje, uma quebra notória na prática dominical e na procura do Baptismo e do Matrimónio; persiste o abandono de muitos jovens, após a Confirmação; não se pode ignorar a escalada das uniões de facto, do crescente número de divórcios, das famílias desestruturadas e com valores alterados; há poucos cristãos esclarecidos na vida social e política; a alergia de muitos à vida associativa é manifesta; os mais jovens, e não só eles, fogem a opções que implicam compromissos permanentes…
Ao mesmo tempo, as paróquias com gente apresentam uma nova fisionomia: para além do costumeiro, que persiste ainda em muitos casos, há muitos pais não praticantes que querem os filhos na catequese e acabam por pedir o seu baptismo na idade escolar, se o não fizeram antes; há jovens, e são milhares, que frequentam livremente a catequese dez e mais anos, em ordem ao Crisma, e, se muitos deles depois partem, também ficam sempre alguns, mais comprometidos e activos; tornou-se normal a prática de reuniões de preparação para o casamento, mas não se consegue travar a saída de muitos para um divórcio fácil; alguns casais, ao lado de outros indiferentes, formam grupos e equipas que reúnem mensalmente para, em comum, esclarecerem e partilharem a sua fé, aprofundarem a riqueza da vida conjugal e familiar e se empenharem em acções apostólicas; há operários e empresários, não muitos, é certo, que procuram orientar a sua vida e acção pela Doutrina Social da Igreja e por força de um cristianismo esclarecido; depara-se-nos um número crescente de leigos voluntários nas actividades da paróquia e da comunidade civil, mas outros só pensam em si e no que lhes dá prazer. Tudo isto, em comunidades com gente, porque já as há quase desertificadas, traduz problemas, mas também um mundo novo de oportunidades para uma acção nova e realista.
Sublinha-se hoje, mais do que antes, quando as pessoas se conheciam, a importância de um acolhimento cordial e aberto a todos, que crie laços e não feche portas, feito por gente preparada para escutar e dialogar, mais do que para afirmar normas secas e fechar caminhos abertos. Sem se acolher bem, não haverá nem tempo, nem clima para escutar as razões de quem vem e procura. Quem acolhe, seja clérigo ou leigo, numa paróquia onde surgem cada dia caras novas, é chamado a mostrar o rosto de um Deus que é Pai, de uma Igreja aberta e serva, que sabe respeitar as pessoas, ser educadora da fé, promotora da comunhão e porta e espaço de uma inequívoca fraternidade. É no acolhimento que melhor se ilustra a missão da Igreja, num tempo e num lugar. Numa comunidade cristã há que acolher sempre bem quem aí vive, quem passa ocasionalmente, quem nela procura alguma coisa. Uma comunidade adulta, responsável e aberta, esconjura o clericalismo e as ideias deturpadas da Igreja e da fé, que enchem ainda a cabeça de muita gente.
É agora a oportunidade de um catecumenato a sério ou de uma catequese de pedagogia catecumenal para os adultos que pedem os sacramentos da iniciação; de uma iniciação cristã, a realizar na família e na catequese paroquial; da formação de cristãos adultos para que vivam e testemunhem a fé, num mundo plural e laico. Nada disto se faz com acções de rotina ou com objectivos de mera conservação. As oportunidades para ir mais longe estão nestes casos à vista: pelos filhos se vai aos pais; pela Confirmação, se formam e motivam jovens a ir mais longe; pelo pedido do Matrimónio, hoje que as razões sociológicas pesam menos, se podem propor acções de formação com mais tempo e pedagogia mais activa; pelas experiências negativas e dolorosas que afectam muitas famílias, se faz apelo a formas de presença mais respeitadoras e fraternas; pela acção nos meios urbanos, onde há colmeias cerradas que favorecem o individualismo, a massificação, o esquecimento de quem delas não pode sair, se devem fazer propostas que personalizem e vençam a solidão, o isolamento, o desgaste diário, a desagregação familiar.
As comunidades para serem evangelizadoras e missionárias têm hoje de ser mais criativas ante as novas situações sociais, culturais e religiosas O dever de servir pede inovação e abandono de velhos critérios e esquemas de uma ruralidade que já não existe. Os mais aptos não se podem gastar no serviço do templo, mas têm de ser estimulados a ser apóstolos fora de portas.
Repensar a acção pastoral e planeá-la, com realismo e esperança, é procurar que cada cristão e cada comunidade entrem num dinamismo de missão, onde todas as pessoas são caminho da Igreja, e todas as oportunidades, graças a aproveitar. Os de fora só serão tocados pela riqueza de dentro, quando virem os permanentes do templo, empurrados para fora dele, a testemunhar o que vivem e a construir o que propõem.

D. António Marcelino


VER [+]

25/01/11

A Basílica do Imaculado Coração de Maria, em Roma, e a Madre Virgínia

A devoção, o culto e a primeira capela e a primeira Igreja dedicadas ao Coração Imaculado Coração de Maria, na Madeira, estão ligadas aos pedidos que Nossa Senhora fez à Madre Virgínia em 1913 e 1914. Muitos, porém, gostarão de saber que a grande Basílica dedicada ao Imaculado Coração de Maria, no Bairro de Parioli, em Roma, também está ligada às revelações e pedidos que o mesmo Coração Imaculado de Maria fez à Serva de Deus.

Os pedidos de Nossa Senhora insistiam para que a Serva de Deus levasse este desejo do seu Coração Imaculado, por intermédio do seu confessor, ao Bispo e este ao Papa. O Bispo, D. António Manuel Pereira Ribeiro, enviou finalmente a Roma o Padre João Prudêncio da Costa, em Outubro de 1919, com um memorandum das revelações e pedidos para ser entregue a Bento XV.

Foi esse memorando que terá movido este Papa a comprar por 1921, antes de morrer (22 de Janeiro de 1922) um terreno meio pantanoso no Parioli, na periferia norte da cidade de Roma, não longe da Embaixada de Portugal junto da Santa Sé, para construir a que iria ser a grande Basílica dedicada ao Imaculado Coração de Maria, na praça Euclides, a qual, por isso, às vezes é chamada Igreja de Santo Euclides. Hoje, porém, a Basílica está na Avenida do Imaculado Coração de Maria.

A construção começou em 1923 com uma doação dos emigrantes italianos do Canadá. O projecto que o arquitecto Armando Brasini fez era demasiado ambicioso, de cúpula monumental e pesado demais para os terrenos pantanosos, pelo que teve que ser modificado várias vezes.

Em 1936 estava construída a cripta que o Papa Pio XI confiou aos Missionários Claretianos do Imaculado Coração de Maria, sendo criada a paróquia no mesmo ano, a 10 de Maio. Só em 1951 foi terminado o tambor que substituiu a grande cúpula inicialmente projectada e construído o edifício paroquial e a residência dos missionários. A construção teve apoios de todo o mundo católico. Mas esta igreja não é de confundir, como já aconteceu ao autor, com a de Santo Eugénio, também em Roma, à qual Portugal ofereceu o altar de Nossa Senhora de Fátima.

O seu aspecto exterior é realçado com um conjunto de 28 colunas que circundam e suportam a fachada e o frontão que tornam a sua estrutura monumental. Foi terminada em 1952 no tempo de Pio XII e João XXIII elevou-a a basílica menor em 23 de Maio de 1959. No interior, em forma de cruz, apresenta no altar-mor um mosaico do Coração de Maria.

Como nota pessoal direi que participei na Missa Nova do Cardeal José Saraiva Martins, celebrada nesta igreja em Março de 1957.

É de esperar que o processo de beatificação da Madre Virgínia divulgue mais dados sobre a construção desta Igreja e aprofundem o papel de Bento XV no seu planeamento e na aprovação das revelações feitas à Madre Virgínia, trazendo mais pormenores sobre o papel carismático da Serva de Deus na promoção do culto e devoção ao Imaculado Coração de Maria, não apenas na Madeira, mas também em Roma e no mundo.
A postulação da Causa de Beatificação irá certamente “descobrir” e estudar, nos Arquivos do Vaticano, o memorando “Síntese da Mensagem confiada à Madre Virgínia, entregue a Bento XV em fins de Outubro de 1919” e a carta que a Madre escreveu a Bento XV em 1915. Ocorre lembrar que a redacção do Segredo que Nossa Senhora confiou a Mélanie e Maximin em 1846 em La Salette se perdera no Vaticano desde 1851 a 2000. Foi a redacção de 1951 entregue ao Papa Pio IX por dois cónegos enviados especiais do Bispo de Grenoble. Dadas por perdidas foram com efeito descobertas em 2000 por Michel Courtville (Cf. Découverte du secret de La Salette, Fayard, Paris 2002 p.9) o qual as estudou e inseriu na sua tese monumental sobre essa aparição.

Temos que confiar nos caminhos de Deus e de Nossa Senhora agora também em relação aos pedidos que o Imaculado Coração de Maria fez à Serva de Deus, Madre Virgínia.

Funchal, 1 de Janeiro de 2011
Aires Gameiro, OH


VER [+]

Ao Compasso do Tempo - Crónica de 21 de Janeiro de 2011

Reencontrei-me há dias com um texto famoso de Michel Foucault, extraído duma lição proferida no Colégio de França em 1981-82, sob o título "A hermenêutica do sujeito". Pois em 3 de Fevereiro de 1982, o discutido pensador francês escrevia: (p. 191 sgs):
“Dir-me-eis que há, pelo menos um caso na sociedade, onde a preocupação pelos outros deve ou deveria ser superior à preocupação por si próprio, porque há, pelo menos uma personalidade que se deve devotar integralmente aos outros e esta personalidade é, evidentemente, o Príncipe”.

O Príncipe, ou seja, o homem político por excelência, é o único, que no domínio do mundo romano, tem de ocupar-se inteiramente dos outros, e nesse sentido, a preocupação por si próprio só tem sentido como princípio de devotamento à cidade dos homens.

Conforme observa Marco Aurélio, é preciso que César se esqueça que o é, pois só cumprirá as funções imperiais se se comportar com as qualidades éticas dum ser humano comum. E continua:

“Tem cuidado, César, em não te deixares “cesarisar” até ao íntimo de ti próprio. Conserva-te, ao contrário, simples, honesto, puro, natural, amigo da justiça, piedoso, benevolente, firme no cumprimento do dever”.

A honestidade moral é o fundamento da conduta, e como tal, deve definir a forma como o imperador se deve comportar.

É urgente cuidar dos outros com a inquietação e a exigência com que alguém se interessa por si próprio porque a exigência consigo mesmo coloca em 1.º lugar os outros como encargo e combate.

Dito de uma outra forma: a quem foi entregue uma responsabilidade, maior ou menor, foi transmitido um principado, uma empresa, um trabalho.

Os interesses vis nunca se deveriam reflectir nesta função. Não é o dinheiro, nem o protagonismo, nem o prestígio, nem o absolutismo da razão, o emblema do poder.

Há só um motivo para se afirmar que “a caridade começa por casa”: começam por casa, e pela nossa, a honestidade, a exigência, a determinação, os princípios!

Foi, com base nesta convicção, que aos outros se promete a mudança de vida, a recuperação do desejo, o acesso ao paraíso, a obtenção dos direitos.

Quando nada disto se alcança, o principado, em vez da moral e da solidez, mostra as feridas do corpo. Em vez do estímulo, manifesta o rombo.

As razões éticas do bem proceder, do proferir a tempo a verdade, de se afirmar responsavelmente como consciência livre pensante, são origens de um tempo totalmente novo.

Não são as coisas mundanas e temporais o campo do Evangelho e da Igreja; mas é sobre o mundano e o temporal que se trava o combate visível entre a justiça e a injustiça, entre a estabilidade sonolenta e o inconformismo.

Uma receita gastronómica só tem sabor quando passa à mesa em exercício de deglutição. Fora disso, é uma página de almanaque. E a fome nunca se matou com possibilidades de ementas.

Um conhecido pensador português, debruçando-se sobre as perspectivas do milénio em que nos encontramos, chamou a atenção para esta análise:

“A esquerda europeia luta pelos povos, mas desinteressa-se do apoio e despreza a pobreza. A direita ajuda os miseráveis mas desinteressa-se pelos povos e sua dignidade”.

Esta é uma avaliação, com certeza a discutir seriamente.

Acrescentar-lhe-ia um comentário:

Para os critérios do Evangelho, os povos e a sua dignidade, os pobres e os miseráveis, não são focos de distinção.

Quem separar realidades tão caras, mata o ser humano e a Esperança duma Europa, cuja solidariedade é o seu valor mais alto.

Preocupando-se pelos outros, o Príncipe vive para o povo e para os oprimidos. Esta causa é a mais definitiva.

(Escrevi este artigo há dez anos – em 13 de Julho de 2001)



VER [+]

11/01/11

Ao Compasso do Tempo - Crónica de 07 de Janeiro 2011

Por vezes é bom olhar para trás. No último dia de 2010 quis entregar em mão uma troca de correspondência de há quarenta e dois anos a um dos intervenientes.
Estava em Paris nesse 1968-1969. Não havia internet, nem RTP Internacional. O telefone era caro. Um canal radiofónico era o único a comunicar… o oficial.
Era o fim de uma década, menos bem entendida por alguns actuais analistas. E compreende-se. Foram tempos da discussão dos colonialismos, da promoção dos direitos humanos e das democracias, do exame crítico das ditaduras e dos totalitarismos, do Concílio Vaticano II, da “Pacem in terris” de João XXIII. Também era a época do aguardar a luz verde ao fundo do túnel para muitas matérias e esperanças. Do lado de lá da fronteira portuguesa, D. António Ferreira Gomes aguardava os momentos da libertação do exílio e do lavar a cara, proscrito que foi pela ilegalidade e pela violência gratuita.
Pois essas abundantes folhas que deixei a esse comunicador insuspeito do que se passava pela nossa leira, e em particular, do que dizia respeito ao nosso Pastor, constituem um reportório da diocese do Porto, no seu dia-a-dia.
Nomes, reuniões, listas solidárias, sectores favoráveis, cartas “apaixonadas” (do ponto de vista político), tendências do laicado e do clero, perspectivas culturais ou ao invés (o governo é o impedimento maior ou os obstáculos residem nas posições da Santa Sé ou nas diplomacias do Núncio Apostólico, etc., etc.), artigos na imprensa internacional, são, entre uma floresta de assuntos, uma narrativa histórica, uma encenação respeitadora de acontecimentos, uma denúncia de situações, mas também, e sobretudo, de anúncio (de coragem, de esperança, de comunhão de justiça, de fidelidade constante, da busca da verdade).
Por aquelas folhas perpassam documentos (hoje esquecidos) de grande objectividade e alguns deles com um humor raro. Surgem também alusões trágicas, à semelhança da peça teatral, onde o coro é contraponto irónico ou alvoraçada de figuras históricas e de seus envolvimentos e cargos, onde os poderes do mundo e os “chefes do Sinédrio” parecem ensaiar um desfecho a contento ora da dignidade ora das conveniências.
Por que é bom saber ler o que nos resta sempre de todas as memórias?
Há causas aparentemente perdidas, que ressuscitam ganhas! Como é possível que o não possível reapareça á boca do palco, recopiando a Ressurreição:
“Não tenhais medo. Sou eu”.
E, nestas tensões civilizadas, há sempre um princípio basilar: “É preciso acreditar no diálogo”. Urge entender rectamente a conflitualidade: as diferenças de posição, em linguagem educada e em porte civilizado, impedem seja chamada de inimizade o que não passa de expressão legítima de pensar diferente. Estamos muito longe da democraticidade.
Esta uma razão primacial para aprender com experiências únicas. Forma pedagógica para pôr o pé num novo ano!

MDN, Capelania Mor, 07 de Janeiro de 2011
Januário Torgal Mendes Ferreira
Bispo das Forças Armadas e de Segurança




VER [+]

03/01/11

Dia Mundial da Paz

Liberdade religiosa: cultura e civilização

«Na liberdade religiosa exprime-se a especificidade da pessoa humana, que, por ela, pode orientar a própria vida pessoal e social para Deus, a cuja luz se compreendem plenamente a identidade, o sentido e o fim da pessoa. Negar ou limitar arbitrariamente esta liberdade significa cultivar uma visão redutiva da pessoa humana; obscurecer a função pública da religião significa gerar uma sociedade injusta, porque esta seria desproporcionada à verdadeira natureza da pessoa; isto significa tornar impossível a afirmação de uma paz autêntica e duradoura para toda a família humana».
Eis como o Papa Bento XVI caracteriza a ‘liberdade religiosa, caminho para a paz’, que é o tema do (44.º) Dia Mundial da Paz, que se celebra no próximo dia 1 de Janeiro.
Na sua mensagem o Papa diz que «é doloroso constatar que, em algumas regiões do mundo, não é possível professar e exprimir livremente a própria religião sem pôr em risco a vida e a liberdade pessoal. Noutras regiões, há formas mais silenciosas e sofisticadas de preconceito e oposição contra os crentes e os símbolos religiosos. Os cristãos são, actualmente, o grupo religioso que padece o maior número de perseguições devido à própria fé. Muitos suportam diariamente ofensas e vivem frequentemente em sobressalto por causa da sua procura da verdade, da sua fé em Jesus Cristo e do seu apelo sincero para que seja reconhecida a liberdade religiosa».

= Liberdade religiosa e respeito recíproco
Partindo da afirmação de que «o respeito de elementos essenciais da dignidade do homem, tais como o direito à vida e o direito à liberdade religiosa, é uma condição da legitimidade moral de toda a norma social e jurídica», o Papa realça que a liberdade religiosa deve ser entendida como capacidade de organizar as próprias opções – muito para além da não coacção – segundo a verdade. Com efeito, temos vivido – sobretudo no mundo ocidental e na Europa em particular – uma espécie de indiferença hostil a Deus e a quem possa manifestar algo de religioso na sua vida, tanto pessoal como comunitária.
«A ilusão de encontrar no relativismo moral a chave para uma pacífica convivência é, na realidade, a origem da divisão e da negação da dignidade dos seres humanos. Por isso se compreende a necessidade de reconhecer uma dupla dimensão na unidade da pessoa humana: a religiosa e a social».
Mesmo que de forma simples perguntamos:
. A quem interessa relativizar a dimensão religiosa senão àqueles que pretendem capciosamente impor uma religião agnóstica e anti-cristã?
. Por que pretendem nacionalizar a educação, criando a ideia de que o Estado tem de formar nos desvalores, sobretudo contra Deus e o Evangelho?

= Dimensão pública da religião
«Quando se reconhece a liberdade religiosa, a dignidade da pessoa humana é respeitada na sua raiz e reforça-se a índole e as instituições dos povos. Pelo contrário, quando a liberdade religiosa é negada, quando se tenta impedir de professar a própria religião ou a própria fé e de viver de acordo com elas, ofende-se a dignidade humana e, simultaneamente, acabam ameaçadas a justiça e a paz, que se apoiam sobre a recta ordem social construída à luz da Suma Verdade e do Sumo Bem».
Numa época em que uns certos ‘intelectuais’ pretendem reduzir a expressão da fé – seja ela qual for – a uma espécie de fenómeno privado, este desafio de Bento XVI ressoa como despertador das consciências, tanto ao nível da Igreja católica como dos diversos intervenientes sócio-políticos. De facto, «os cristãos são chamados – não só através de um responsável empenhamento civil, económico e político, mas também com o testemunho da própria caridade e fé – a oferecer a sua preciosa contribuição para o árduo e exaltante compromisso em prol da justiça, do desenvolvimento humano integral e do recto ordenamento das realidades humanas. A exclusão da religião da vida pública subtrai a esta um espaço vital que abre para a transcendência».
De forma simples perguntamos:
. Até onde irá o nível de preconceito para que seja tentada uma negação da história dos povos, colocando Deus fora do espaço público e político?
. Não será que certos mentores dalguma luta religiosa, particularmente na tentativa de privatização dos símbolos religiosos (cristãos ou não), não servem, antes, ideologias falidas e anquilosadas... materialistas?

Citando ainda a mensagem de Bento XVI para o próximo dia mundial da paz concluímos: «a paz é o resultado de um processo de purificação e elevação cultural, moral e espiritual de cada pessoa e povo, no qual a dignidade humana é plenamente respeitada».
Assim o vivamos no novo ano que se aproxima, deixando as lamúrias de lado e empenhando-nos na construção da verdadeira liberdade religiosa como caminho para a paz.

António Sílvio Couto
(asilviocouto@gmail.com)



VER [+]

Ao Compasso do Tempo - Crónica de 31 de Dezembro 2010

Leitura semanal dos problemas do mundo e da Igreja

1. Escrevo esta nota a três dias do fim de 2010.

Há cerca de dezassete (dezasseis…) anos, a propósito dos direitos humanos na China, um conhecido político acusava (e acusa, de acordo com o registo no volume 1º das suas Memórias), um eclesiástico, só porque este expressou publicamente o desejo de tais direitos serem reconhecidos, como em qualquer país…

E o reparo traduziu-se no seguinte considerando: “A pessoa em questão tinha apetências de político…”

Qualquer cidadão ao lado da saúde, da educação, do justo salário, do emprego devido, etc., etc. … actua numa posição comum. É política? Claro… Só que, batidos por ideias menos claras, tantos confundem um olhar generalista com “o partidário” do xadrez.

É esta cultura prioritária, que temos de exigir a um povo que, privado de adultez política, confunde um médico de medicina geral com um especialista da mesma…

A educação para a cidadania é um primeiro e essencial degrau do saber/comportamento.

Todos somos políticos. Mas, políticos em partidos ou em opções partidárias de acção, é uma outra realidade.

Dada esta distinção primária, fico admirado com a não ciência.

2. Na mesma sequência fico atónito com referências a colegas do mesmo ministério (episcopal) através dos “média”…
Como se sentirão os membros do júri do “Prémio Pessoa”?!
Como se sentirão respeitados os bispos eméritos, os quais, pelos vistos, apesar de membros de uma comunhão colegial universal (caso contrário, terá razão um recente ex-ministro da Defesa que, em determinada circunstância, se referia, no caso de Setúbal a um “ex-bispo”… dessa Diocese) se poderão sentir reduzidos a “vozes de esquina”, a simples pontos de vista, a meros emissores opinativos…

Se os não eméritos falam na “linguagem” da Assembleia Plenária da Conferência Episcopal, era fundamental a notícia dos resultados (houve quem tenha votado contra, a favor ou em abstenção) para se avaliar do significativo da conclusão …

O jornalista António Marujo, no “Público” de 26 de Dezembro de 2010, anotava juízos de facto e de valor a serem meditados!

Fale-se em mudanças de xadrez… Mas sublinhe-se as metas e os objectivos de um serviço de pastores, dos meios utilizados, dos resultados obtidos…
Esta humildade pastoral é de primeira água. Respeita a acontecimentos concretos, pessoas em funções, dificuldades às quais se não pode fugir.

O mesmo se diga das autarquias, das associações cívicas, das famílias e do Governo, com certeza…

Foge-se da avaliação “como o diabo da cruz…”.
Estamos no fim de um ano e princípio de outro. Um melhor 2011!

MDN, Capelania Mor, 31 de Dezembro
Januário Torgal M. Ferreira


VER [+]