Jornal de Opinião

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25/01/11

Ao Compasso do Tempo - Crónica de 21 de Janeiro de 2011

Reencontrei-me há dias com um texto famoso de Michel Foucault, extraído duma lição proferida no Colégio de França em 1981-82, sob o título "A hermenêutica do sujeito". Pois em 3 de Fevereiro de 1982, o discutido pensador francês escrevia: (p. 191 sgs):
“Dir-me-eis que há, pelo menos um caso na sociedade, onde a preocupação pelos outros deve ou deveria ser superior à preocupação por si próprio, porque há, pelo menos uma personalidade que se deve devotar integralmente aos outros e esta personalidade é, evidentemente, o Príncipe”.

O Príncipe, ou seja, o homem político por excelência, é o único, que no domínio do mundo romano, tem de ocupar-se inteiramente dos outros, e nesse sentido, a preocupação por si próprio só tem sentido como princípio de devotamento à cidade dos homens.

Conforme observa Marco Aurélio, é preciso que César se esqueça que o é, pois só cumprirá as funções imperiais se se comportar com as qualidades éticas dum ser humano comum. E continua:

“Tem cuidado, César, em não te deixares “cesarisar” até ao íntimo de ti próprio. Conserva-te, ao contrário, simples, honesto, puro, natural, amigo da justiça, piedoso, benevolente, firme no cumprimento do dever”.

A honestidade moral é o fundamento da conduta, e como tal, deve definir a forma como o imperador se deve comportar.

É urgente cuidar dos outros com a inquietação e a exigência com que alguém se interessa por si próprio porque a exigência consigo mesmo coloca em 1.º lugar os outros como encargo e combate.

Dito de uma outra forma: a quem foi entregue uma responsabilidade, maior ou menor, foi transmitido um principado, uma empresa, um trabalho.

Os interesses vis nunca se deveriam reflectir nesta função. Não é o dinheiro, nem o protagonismo, nem o prestígio, nem o absolutismo da razão, o emblema do poder.

Há só um motivo para se afirmar que “a caridade começa por casa”: começam por casa, e pela nossa, a honestidade, a exigência, a determinação, os princípios!

Foi, com base nesta convicção, que aos outros se promete a mudança de vida, a recuperação do desejo, o acesso ao paraíso, a obtenção dos direitos.

Quando nada disto se alcança, o principado, em vez da moral e da solidez, mostra as feridas do corpo. Em vez do estímulo, manifesta o rombo.

As razões éticas do bem proceder, do proferir a tempo a verdade, de se afirmar responsavelmente como consciência livre pensante, são origens de um tempo totalmente novo.

Não são as coisas mundanas e temporais o campo do Evangelho e da Igreja; mas é sobre o mundano e o temporal que se trava o combate visível entre a justiça e a injustiça, entre a estabilidade sonolenta e o inconformismo.

Uma receita gastronómica só tem sabor quando passa à mesa em exercício de deglutição. Fora disso, é uma página de almanaque. E a fome nunca se matou com possibilidades de ementas.

Um conhecido pensador português, debruçando-se sobre as perspectivas do milénio em que nos encontramos, chamou a atenção para esta análise:

“A esquerda europeia luta pelos povos, mas desinteressa-se do apoio e despreza a pobreza. A direita ajuda os miseráveis mas desinteressa-se pelos povos e sua dignidade”.

Esta é uma avaliação, com certeza a discutir seriamente.

Acrescentar-lhe-ia um comentário:

Para os critérios do Evangelho, os povos e a sua dignidade, os pobres e os miseráveis, não são focos de distinção.

Quem separar realidades tão caras, mata o ser humano e a Esperança duma Europa, cuja solidariedade é o seu valor mais alto.

Preocupando-se pelos outros, o Príncipe vive para o povo e para os oprimidos. Esta causa é a mais definitiva.

(Escrevi este artigo há dez anos – em 13 de Julho de 2001)


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