Jornal de Opinião

São muitos os textos enviados para a Agência Ecclesia com pedido de publicação. De diferentes personalidades e contextos sociais e eclesiais, o seu conteúdo é exclusivamente da responsabilidade dos seus autores. São esses textos que aqui se publicam, sem que afectem critérios editoriais da Agência Ecclesia. Trata-se de um espaço de divulgação da opinião assinada e assumida, contribuindo para o debate de ideias, que a internet possibilita.

29/07/09

À luz da carta aberta – ‘Votar em liberdade de consciência esclarecida’

Votar esclarecidamente... como cristão


Com data de 22 de Junho passado – dia litúrgico de São Tomás Moro, padroeiro dos políticos cristãos – um grupo de sessenta personalidades (entre eles/as professores universitários, médicos, deputados e economistas) tornou pública uma carta aberta, endereçada aos partidos políticos portugueses, em ordem ao esclarecimento para as próximas eleições legislativas. O documento intitula-se: «Votar em liberdade de consciência esclarecida» e dá como prazo de resposta, até final deste mês de Agosto, para que todos os interpelados nos esclareçam e nós possamos votar sem trair a nossa consciência.
Partindo da citação do número quatro da Nota Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa sobre as próximas eleições, ‘Direito e dever de votar’ (de 23 de Abril de 2009), os subscritores recordam critérios de escolha: os direitos humanos, a família, a vida humana, as questões (direito e segurança) de trabalho, o combate à corrupção, as temáticas da saúde e da justiça, o respeito pela iniciativa privada, sobretudo no âmbito da educação e da solidariedade.
Apelando ao esclarecimento, os promotores da ‘carta aberta’, incentivam ao «confronto dos programas» partidários em ordem a que quem vai ter de votar – e somos todos: eleitos e eleitores – saiba escolher sem ninguém se esconder sob a capa da ideologia e das conveniências de grupos e/ou de lóbis.
Com todo o risco de cidadania – e mesmo de opinião cívica – que nos é, minimamente, conferido, ousamos dizer, atendendo aos critérios citados a partir da ‘Nota pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa’, em quem NÃO VOTAMOS:
* Em quem confunda, simplesmente, os direitos adquiridos com os deveres necessários e justos para com os outros. Breves exemplos: os salários arranjados sem trabalho digno, as regalias sindicais sem participação na riqueza desenvolvida, os cargos de conveniência sem concurso ou sem a preparação adequada.
* Em quem tente promover o casamento entre pessoas do mesmo sexo, em detrimento e/ou em aviltamento da família constituída na complementaridade entre homem e mulher. Breves razões: abjuramos certos argumentos filosóficos e sociológicos dos mentores da cultura anti-matrimónio (entre homem e mulher) e perante uma espécie de exaltação das razões de cunho mais emocional... em vez do recurso ao pensamento racional.
* Todo e qualquer partido que defenda o aborto, a eutanásia (activa ou passiva), a mutilação ou a violência sobre os mais fracos e indefesos, antes de nascer ou em estádio pré-mortem. Breve explicação: denunciando esse artifício de (pretenso) progressismo da ‘interrupção da gravidez’ como se fosse um método de controlo de natalidade... eficaz e sem consequências pessoais, afectivas, psicológicas, familiares e sociais.
* Em quem usa os desempregados como artefacto eleitoral, esquecendo-os, quando já não interessam nem dão votos, sobretudo quando são jovens e andam à procura do primeiro emprego. Breves exemplos: quando se fomenta o subsídio de desemprego – a médio ou a longo prazo – sem apresentar qualquer perspectiva de saída da crise de identidade humana e cultural... particularmente quando os atingidos vivem no interior do país ou porque fazem parte de alguma minoria social e étnica.
* Em quem tenta encobrir – no Parlamento ou nas autarquias – a corrupção dos seus, servindo-se da mesma temática como arma de arremesso contra os adversários, apresentando-se quais ‘pregadores da decência’ sem se verem ao espelho. Algumas razões: quando tentam crescer na cotação social e eleitoral à custa da promoção da incoerência intelectual e moral... aureolada de defesa de uma certa ecologia e sob o signo da manipulação de alguma comunicação social.
* Em quem se serve da saúde e da justiça para exercer os ‘seus poderes’ de controlo dos mais desfavorecidos, seja pela promoção (quase exclusiva) da saúde pública à custa de favores de grupo, seja pelo adiamento da justiça (lenta e muito cara) com leis contraditórias e só explicadas por ‘sábios’ do seu escritório e associados.
* Em quem tentar usar a educação como espaço ideológico para ser trampolim para outros voos, sejam claros ou ao serviço de correntes transversais de sabor exotérico e iniciático. Breves questões: as lutas de professores terão tido sempre em conta os estudantes, que são a matéria do professorado? As batalhas dos alunos terão sido sempre pela melhor aprendizagem?

Tal como se diz na carta aberta – ‘votar em liberdade de consciência esclarecida’ – esperamos que «em tempo razoável os partidos candidatos respondam de que forma pretendem ou não corresponder às questões» colocadas, «com que políticas e dispondo de que meios para lhes dar cabal execução no exercício da próxima legislatura e se tal acontecer da acção governativa».
Pela minha parte já disse em quem não voto. Espero que outros sejam capazes de me apresentarem ideias... com verdadeiro sentido cristão.
O voto é uma arma – pacífica e certeira – de consciência bem formada e esclarecida. Nunca por nunca me absterei!

A. Sílvio Couto

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24/07/09

Ao Compasso do Tempo – Crónica de 24 de Julho de 2009

1. Será um defeito andar colado ao que flui… Mas, ao mesmo tempo, será muito grave esquecer as mortes dos militares no Afeganistão, os operados aos olhos no Hospital de Santa-Maria, a tomada de posição de “intelectuais” e de católicos quanto às próximas eleições, etc, etc.
Mais uma ocasião se nos depara, quando um documento do Papa Bento XVI, praticamente não comentado entre nós, é, apesar de tudo, fonte de análises e estudo (cf. artigo de Frei Bento Domingues, in “Público” de domingo).
Por sinal, José Tolentino de Mendonça e eu próprio coincidimos no diálogo aberto com Henrique Raposo, o qual, na edição do “Expresso” de 18 de corrente mês, volta ao tema.

2. Suponho que, à semelhança de qualquer escrito, este deve ser escavado até às funduras. O centro desta obra é uma concepção do ser humano no seu tom ontológico, na sua finalidade de honra ao serviço do bem comum, na articulação com a cidadania do orbe e da família do mesmo ser, na concepção de uma sociedade onde a justiça impera e os seus deveres são respeitados por quem tem como perspectiva uma sociedade nova, fundada em princípios do direito.
Não há privilégios de minorias. Não se entregam o dever e a responsabilidade a sectores avançados, iluminados pela super – estrutura, e a ouvintes que só sabem escutar os sons da infra – estrutura. Estes elementos ideológicos não presidem à interpretação da pessoa; ao conceito da relação inequívoca entre cidadãos, como irmãos da “cidade” ou fiéis da “liturgia” pátria; à noção de desenvolvimento onde os excluídos e, por via disso, os oprimidos, funcionam como arautos deterministicamente reabilitadores de uma nova ordem, a caminho de uma sociedade imortal sem tensões; à nomenclatura da Globalização como instância teórica, enquanto a articulação social e a interdependência da “família universal” é porta-voz de uma mudança sadia, onde os bens e as conquistas sociais são o produto da “exploração” dos ricos sobre os que nada têm (antigos e novos pobres), sem que os diminuídos possam beneficiar de uma universalidade de valores e de perspectivas de alteração. Esta ideologia nunca se capta neste texto… Onde a luta contra “o conceito” e o imperialismo da praxis!?
Conforme salienta o Papa Bento XVI: “a Humanidade inteira aliena-se quando se entrega a projectos humanos, a ideologias e a falsas utopias. O desenvolvimento dos povos depende sobretudo do reconhecimento que são uma só família” (nº 53).
Uma plataforma ideológica abafa a iniciativa e a liberdade de pensar; afronta o pluralismo; oferece-nos os mecanismos dos opressores e dos escravos, sem voz; aponta para o fatalismo de um “oásis”, sem falta de água e dos demais bens. Inclusivamente onde não haverá sonhos.
Tudo alcançou o definitivo. Acham que Bento XVI opta pelo primarismo?
Ora os cuidados pela justiça e a atenção, em nome do direito e da solidariedade pelos pobres, não é um dogma da “frente comum” nem uma determinação fanática, onde os messianismos são um emblema dos Vencidos.
A verdade e a solidariedade são eixos essenciais de uma exigência social. Nas eleições de 27 de Setembro próximo seria bom que este texto e outros (até opostos), de índole social, fossem estudados e discutidos! Desconfio que a inteligência estará ausente.
São temas a ponderar por uma cidadania, sem imposições nem orientações proibidas de estudo e discussão. No seguimento deste documento, seria imprescindível uma tomada de posição sobre as exigências da paz e as tentações da violência. A corrupção merecia um “desmentido” ético enquanto máximo serviço à responsabilidade de todos nós. Mas nem tudo o que deve ser tematizado a propósito de assuntos de tão extremo relevo, tem de lá estar. Na Encíclica do Papa, que a discutir, não é pelo olhar citado e reclamado!


Lisboa, 24 de Julho de 2009

D. Januário Torgal Mendes Ferreira
Bispo das Forças Armadas e de Segurança

Leitura semanal dos problemas do Mundo e da Igreja
http://castrense.ecclesia.pt

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Ao Compasso do Tempo – Crónica de 24 de Julho de 2009

1. Será um defeito andar colado ao que flui… Mas, ao mesmo tempo, será muito grave esquecer as mortes dos militares no Afeganistão, os operados aos olhos no Hospital de Santa-Maria, a tomada de posição de “intelectuais” e de católicos quanto às próximas eleições, etc, etc.
Mais uma ocasião se nos depara, quando um documento do Papa Bento XVI, praticamente não comentado entre nós, é, apesar de tudo, fonte de análises e estudo (cf. artigo de Frei Bento Domingues, in “Público” de domingo).
Por sinal, José Tolentino de Mendonça e eu próprio coincidimos no diálogo aberto com Henrique Raposo, o qual, na edição do “Expresso” de 18 de corrente mês, volta ao tema.

2. Suponho que, à semelhança de qualquer escrito, este deve ser escavado até às funduras. O centro desta obra é uma concepção do ser humano no seu tom ontológico, na sua finalidade de honra ao serviço do bem comum, na articulação com a cidadania do orbe e da família do mesmo ser, na concepção de uma sociedade onde a justiça impera e os seus deveres são respeitados por quem tem como perspectiva uma sociedade nova, fundada em princípios do direito.
Não há privilégios de minorias. Não se entregam o dever e a responsabilidade a sectores avançados, iluminados pela super – estrutura, e a ouvintes que só sabem escutar os sons da infra – estrutura. Estes elementos ideológicos não presidem à interpretação da pessoa; ao conceito da relação inequívoca entre cidadãos, como irmãos da “cidade” ou fiéis da “liturgia” pátria; à noção de desenvolvimento onde os excluídos e, por via disso, os oprimidos, funcionam como arautos deterministicamente reabilitadores de uma nova ordem, a caminho de uma sociedade imortal sem tensões; à nomenclatura da Globalização como instância teórica, enquanto a articulação social e a interdependência da “família universal” é porta-voz de uma mudança sadia, onde os bens e as conquistas sociais são o produto da “exploração” dos ricos sobre os que nada têm (antigos e novos pobres), sem que os diminuídos possam beneficiar de uma universalidade de valores e de perspectivas de alteração. Esta ideologia nunca se capta neste texto… Onde a luta contra “o conceito” e o imperialismo da praxis!?
Conforme salienta o Papa Bento XVI: “a Humanidade inteira aliena-se quando se entrega a projectos humanos, a ideologias e a falsas utopias. O desenvolvimento dos povos depende sobretudo do reconhecimento que são uma só família” (nº 53).
Uma plataforma ideológica abafa a iniciativa e a liberdade de pensar; afronta o pluralismo; oferece-nos os mecanismos dos opressores e dos escravos, sem voz; aponta para o fatalismo de um “oásis”, sem falta de água e dos demais bens. Inclusivamente onde não haverá sonhos.
Tudo alcançou o definitivo. Acham que Bento XVI opta pelo primarismo?
Ora os cuidados pela justiça e a atenção, em nome do direito e da solidariedade pelos pobres, não é um dogma da “frente comum” nem uma determinação fanática, onde os messianismos são um emblema dos Vencidos.
A verdade e a solidariedade são eixos essenciais de uma exigência social. Nas eleições de 27 de Setembro próximo seria bom que este texto e outros (até opostos), de índole social, fossem estudados e discutidos! Desconfio que a inteligência estará ausente.
São temas a ponderar por uma cidadania, sem imposições nem orientações proibidas de estudo e discussão. No seguimento deste documento, seria imprescindível uma tomada de posição sobre as exigências da paz e as tentações da violência. A corrupção merecia um “desmentido” ético enquanto máximo serviço à responsabilidade de todos nós. Mas nem tudo o que deve ser tematizado a propósito de assuntos de tão extremo relevo, tem de lá estar. Na Encíclica do Papa, que a discutir, não é pelo olhar citado e reclamado!


Lisboa, 24 de Julho de 2009

D. Januário Torgal Mendes Ferreira
Bispo das Forças Armadas e de Segurança

Leitura semanal dos problemas do Mundo e da Igreja
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23/07/09

Desemprego fez aumentar suicídio

A taxa de desemprego, nalgumas regiões da Europa, fez aumentar o suicídio e as mortes por abuso de álcool. Segundo um estudo publicado numa revista britânica por cada um por cento de aumento de desemprego, verificou-se o crescimento de quase um por cento de suicídios em pessoas com menos de sessenta e cinco anos, totalizando cerca de seiscentas mortes.
Diante destes dados somos como que obrigados a reflectir não só sobre o significado da vida humana com as suas diferentes cambiantes e propriedades, mas também sobre a dimensão operacional do trabalho (emprego e/ou ocupação, remuneração) na prossecução do projecto de vida pessoal, social e até político.
De facto, ‘ter trabalho’ – outros dirão mais ‘emprego’ – é, hoje, um dom (condição, qualidade, regalia, etc.) de grande valor, pois nem sempre é fácil conseguir ter meios de subsistência mínimos nem se torna recuperável a dignidade da pessoa humana se não houver recursos para uma autonomia suficiente.
Quando se procura inquirir – por exemplo – sobre ‘a profissão menos valorizada pela sociedade’ recolhem-se – segundo uma abordagem de mais de trinta mil participantes a que tivemos acesso – dados como estes: 35% diz que são os funcionários de limpeza, 25% diz que são os agricultores e pescadores, 9% diz que são os professores...
Com efeito, num certo escalonamento das actividades profissionais poderemos ser surpreendidos por preconceitos da mais diversificada interpretação: desde o contexto social até à promoção de umas profissões em detrimento de outras.... já para não falarmos da exaltação de uma certa preguiça tornada situação de bon vivant... epicurista!
A acentuação da dureza do trabalho tem ofuscado a nossa correcta visão e vivência na participação no projecto criador de Deus, na medida em que completámos – dando-lhe uma feição pessoal – hoje a criação inicial de Deus, pois, entregando-nos a essa força que nos vem de sermos, neste tempo e em cada lugar, aqueles/as que fazem com que Deus continue a embelezar este mundo, servindo-se de nós e colocando-nos ao seu serviço humilde e confiadamente.
Diante desta espécie de leitura cristã da espiritualidade do trabalho, o desemprego torna-se, antes de mais, uma ofensa à dignidade humana, que despersonaliza quem dele é vítima e escraviza quem dele recebe as réplicas de mal-estar e até de certos tentáculos de doença. Por isso, o subsídio (ou qualquer outra denominação) de desemprego torna-se um mal (menor ou maior!), sobretudo se dele se faz depender a vida de uma família ou de algum projecto mais de natureza pessoal.
Deixamos, sem qualquer preconceito, breves questões:
- Tenho uma visão de trabalho mais em favor dos outros ou em meu proveito? Exijo mais os meus direitos do que me comprometo com os meus deveres? Vivo do fruto do meu trabalho ou limito-me (ao menos em desejo!) a viver às custas do Estado?
- Vejo a minha profissão como um meio de santificação ou como um mero usufruto de valores materiais? Procuro dar testemunho em qualidade profissional ou limito-me a ser uma espécie de sanguessuga contra o patrão? Tento criar bom ambiente no espaço do trabalho ou serei, antes, fomentador de quezílias e de intrigas?
- Pela forma como trabalho e participo nas responsabilidades sociais tento ser presença cristã assumida ou, pelo contrário, envergonho da minha fé? Valorizo os outros como companheiros ou vejo-os como adversários e concorrentes? Valho-me da minha posição profissional para tirar proveito de regalias na vida pública e política?

Trabalhando eficazmente seremos testemunhas de fé amassada pela dádiva em favor dos outros... como foi Jesus, ‘o filho do carpinteiro’.

A. Sílvio Couto

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22/07/09

Ser criança diante de Deus

Conta-nos o Evangelho de S. Marcos (Mc 10, 13-16) que as crianças eram apresentadas a Jesus para que as tocasse e abençoasse. Eram as próprias mães dessas crianças que tomavam esta audaciosa iniciativa. No seu coração – feminino e materno ao mesmo tempo – intuíam que o Mestre da Galileia podia dar aos seus filhos algo que elas não podiam dar: uma mercê que estava acima das suas capacidades; um presente que vinha directamente de Deus. E elas, como boas mães que eram, estavam dispostas a superar todos os obstáculos. Desejavam ardentemente, para aqueles que mais amavam nesta Terra, uma bênção vinda do Céu.
Os discípulos, ao verem aquele alvoroço infantil, procuravam evitar que Jesus fosse importunado. Era impensável que o seu Mestre, que tinha tanto que fazer e ensinar, perdesse o seu precioso tempo com aquele auditório barulhento e imaturo. No entanto – continua o relato evangélico –, vendo este modo de actuar dos seus discípulos, Jesus indignou-se. Os discípulos ficaram surpreendidos com esta reacção. Nessa ocasião, ouviram dos seus lábios um luminoso ensinamento que nunca mais se esqueceram: “Deixai vir a Mim as crianças e não as impeçais, porque dos que são como elas é o Reino de Deus. Em verdade vos digo: quem não receber o Reino de Deus como uma criança, não entrará nele” (Mc 10, 14-15).
Ser criança diante de Deus não é ser infantil, nem simplório, nem ingénuo. É simplesmente reconhecer a nossa pequenez. Reconhecer que diante de Deus somos muito pequenos – mais pequenos do que diante de nós um recém-nascido. Além de pequenos, somos verdadeiramente filhos de Deus. Podia não ser assim. Podíamos ser somente criaturas como o resto da criação, mas temos a dignidade de filhos de Deus. Somos – entre todas as criaturas visíveis – os únicos que foram criados à imagem e semelhança do Criador.
Ser criança diante de Deus é cortar pela raiz a tendência que todos temos para a auto-afirmação. É uma tendência perniciosa, que faz enormes estragos no nosso interior e no relacionamento com os outros. É uma verdadeira lepra, da qual procede um duplo mal: afasta-nos de Deus e também nos afasta dos outros.
Ser criança diante de Deus é renunciar radicalmente ao orgulho e procurar uma humildade genuína. Existe uma humildade que não é genuína porque é sinónimo de acanhamento, timidez e ausência de personalidade. Se é verdadeiramente humilde, o cristão será – ao mesmo tempo –, profundamente audaz. Sabe que sem Deus não pode nada, mas também sabe que com Ele pode tudo. Sabe que se conta com a ajuda de Deus – que é Pai e é todo-poderoso – não tem nada a temer. A vitória sobre o mal está garantida.
No fundo, ser criança diante de Deus é confiar completamente n’Ele, aconteça o que acontecer, como as crianças pequenas confiam totalmente nos seus pais.

Pe. Rodrigo Lynce de Faria

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21/07/09

Apontamento

Este é o início da minha postagem.
Um profundo silêncio, reinava na casa mortuária da igreja, apesar de se encontrar ali reunido, elevado número, de familiares e amigos, do ente querido que se velava. Homens de rostos graves, senhoras de olhar compadecido, chorando lágrimas teimosas, traduziam toda a dor sentida, por aquele desaperecimento. Junto à urna onde se erguiam velas acesas, brilhando palidamente, um mar de flores. Na parede fronteiriça, Jesus crucificado, como para lembrar aos mais desanimados, que o Seu sacrificio na cruz, não fora em vão, mas para nos garantir a continuidade da vida, para além da morte.
Olhei através de uma das pequenas janelas rectangulares da casa, como se procurasse no sol, que lá fora tudo inundava, refúgio para a tristeza que sentia. Foi então, que não tardei a ver espreitar para o interior, três garotinhos, dois rapazes e uma menina, de uns cinco ou seis anos de idade. Tudo contemplaram atentamente, com um olhar sereno e um sorriso ingénuo. Depois desapareceram, como passarinhos que levantam voo ao menor ruído. Ouvi as suas vozitas cristalinas afastarem-se; mas poucos minutos passados, de novo os três adoráveis rostozinhos apareciam na janela. Agora, olhavam tudo mais demoradamente: a urna, as flores,o crucifixo, sem que o sorriso os abandonasse; porém ao contemplarem a assistência, enlutada e chorosa, de súbito, tomaram uma expressão de gravidade e entreolharam-se admirados, interrogando-se mutuamente, em silêncio. Adivinhei o que pensavam, quais as suas dúvidas. - " Porquê tantas lágrimas, se quem estava deitado, naquela grande caixa de madeira, dormia tranquilamente, sob o olhar terno de Jesus?!..."
Na sua simplicidade imensa, são as criancinhas que mais perto estão da verdade. Não se morre: dorme-se no Senhor. Os adultos tudo complicam com a sua incredulidade, com as suas dúvidas, baseando-se mais na ciência do que na fé. Ao contemplar aqueles pequeninos, como eu lastimei profundamente, que os "grandes" não quisessem ser crianças!...

Susana Maria Cardoso

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17/07/09

Ídolos, super heróis e pessoas normais

Cristiano Ronaldo e Michael Jackson ocuparam páginas inteiras de jornais e tempos de antena sem conta, nas rádios e televisões. Foram ocasião de regozijo estrondoso e de lágrimas capazes de inundar um continente. Cansaram outros até à náusea.
Cristiano Ronaldo e Michael Jackson ocuparam páginas inteiras de jornais e tempos de antena sem conta, nas rádios e televisões. Foram ocasião de regozijo estrondoso e de lágrimas capazes de inundar um continente. Cansaram outros até à náusea.
O primeiro, conhecido pela arte de jogar futebol e pelas loucuras amorosas, custou 94 milhões de euros ao clube de futebol ou alguém que espero lucros. O escândalo deste negócio continua nos jornais. Revistas de opinião teorizam e falam de imoralidade e de excesso que ofende. O clube que o comprou tem dívidas de 500 milhões! Mas Cristiano, ídolo de multidões, diz sem pejo dele próprio que vale mais do que o clube pagou…
O segundo, um rei da música pop, uma história sinuosa e uma morte inesperada e envolta em mistério, astuciosamente aproveitada para pôr as vendas do seus discos no topo, perpetuar a sua memória e fazer contratos com a televisão de concertos já requentados, repetidos agora até à exaustão. Tão rico ele era, como se dizia, revelou-se agora que as suas dívidas são de centenas de milhões, e não falta quem pergunte, dada a situação da cidade de Los Angeles com um deficit orçamental de 400 milhões de dólares, quem irá pagar as despesas de um funeral faraónico.
As multidões entraram em histeria e os críticos não param de opinar, em todos os tons, sobre estes ídolos, tornados super heróis, num mundo que perdeu o rumo do essencial.
Décadas atrás, definia-se o homem como animal racional. Uma definição seca que dizia muito para o diferenciar dos outros animais, mas se ficava por implícitos que, em linguagem comum, o deixavam empobrecido de muitos aspectos essenciais para a sua compreensão. Davam-lhe a propriedade de raciocinar, que muitos já usam pouco.
Hoje, pelo menos, em definição mais realista e verdadeira, pode ir-se mais longe.
O homem é um ser-com-os outros, um ser aberto ao transcendente, um ser que leva consigo apelos de liberdade interior, de modo a que, se ele quiser, nada o pode limitar interiormente. É cidadão de um mundo globalizado e sem fronteiras, protagonista da história, não da historieta, tão rico por sua natureza, que é um ser irrepetível e único.
Acompanha-o um mistério em que nem ele próprio penetra por completo, mas se vai desvendando, a pouco e pouco, ao longo dos caminhos, direitos ou tortuosos, da sua existência. Um mistério que o ultrapassa, para além da sua vontade e da qualidade e abundância dos seus sonhos e projectos. Capaz do melhor e do pior, de defender a sua liberdade até à morte ou de se deixar agrilhoar por coisas passageiras e efémeras. Capaz de ser águia altaneira que rompe os céus, ou vulgar ave de capoeira, de voos curtos e sem história, mesmo que dele se faça um ídolo ou o transformem em super-homem.
Sempre que a pessoa, homem ou mulher, se esquece da sua verdadeira grandeza, escraviza-se a si mesmo, ou outros o fazem escravo, em proveito próprio. A grandeza está na normalidade do que se é, se assume e se vive, não num alarido alienante.
A proposta educativa de modelos normais, tão normais que emergem da mediocridade, ajudou muita gente a ser gente. Hoje, o sonho de ser um cristiano ronaldo, para ganhar muito dinheiro, ou um michael jackson para enlouquecer multidões, começa na escola e, por isso mesmo, a escola, para muitos os interessa cada vez menos, os enfastia e a vomitam. O dom de cada um cultiva-se. Não se vive de sonhos, de fantasias ou invejas.
Ganhar muito e ser famoso, sem esforço e depressa, é ideal de muita gente nova. Mas não é este o projecto que lateja no mais íntimo de cada pessoa. E esse é o que conta.
Estamos ante um problema cultural grave. Só a educação a sério o poderá ir resolvendo. Criticou-se António Guterres quando falou da “paixão pela educação”. Os profetas incomodam. Mas a vida dá-lhes sempre razão. Às vezes, tarde demais.

António Marcelino

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Ao Compasso do Tempo - Crónica de 17 de Julho de 2009

Leitura semanal dos problemas do Mundo e da Igreja



1. De expectativas escrevi a semana transacta, salientando os “preconceitos” que germinam à nossa volta em matéria da “questão social” nos seus matizes vários. Pois, no sábado 11 de Julho, um semanário, em local de opinião, citando Mateus 23, 21 (“Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”), afirmava que “há uma coisa que irrita no Papa: é quando ele se põe a trazer Marx para o Evangelho. Aquilo que o Papa tem dito sobre – a suposta – falta de ética do capitalismo não ficaria mal na colectânea dos “summer hits” de Francisco Louçã”. Já não comento o propósito de Jacques Attali (o qual é de outra área do pensamento) quando opina que “o capitalismo tem de ser controlado pelo direito. A questão está, sobretudo, em saber em que é que a moral pode ajudar à fixação de um Estado de direito planetário”. Mas acrescento o parecer do agnóstico francês Comte – Sponville, especialista em filosofia ética, quando afirma que “o capitalismo é amoral. Não funciona em ordem à virtude, à generosidade, ao desinteresse mas, ao invès, ao interesse pessoal ou familiar: funciona em ordem ao egoísmo” (Le Monde dês Religions, Paris, Julho-Agosto de 2009, n.º 36, ps. 78-79). Marxismo no pensamento do Papa Bento XVI?! Quando o Papa no domingo passado, antes da oração do “Angelus”, denunciou na Praça de S. Pedro “as desigualdades sociais e as injustiças estruturais intoleráveis, defendendo a necessidade de soluções globais para resolver os problemas, ou seja, uma estratégia coordenada para procurar tais remédios de globalização solidária”, estará a perfilhar teses marxistas?
Já não se trata de preconceitos (anteriores ao texto de Bento XVI). Trata-se, sim, de pós-conceitos… no sentido de que o questionamento dos mecanismos sociais vigentes e a urgência de uma regulação ética e jurídica, assumida por uma política da defesa do bem comum… derivam de entorses ideológicas, que não da principiologia do magistério social da Igreja. Reclamar padrões do comportamento no tocante ao liberalismo é manchar a cooperação leal entre Deus e César, intrometendo-se alguém em área indevida, com trejeitos de imperialismo mental?
São perguntas em bom diálogo. Realmente há cinquenta anos quem fizesse discursos, à semelhança desta sã doutrina do Papa, recebia logo um carimbo oficial de subversivo. Afinal de contas, avançamos muito pouco…!

2. Contrariando o prometido, não é hoje que destacarei este ou aquele conteúdo do texto papal. E não o faço para dar notícia, neste cantinho, do que, porventura, corre o risco de não ser noticiado.
Falecido em 3 de Fevereiro último, o Senhor D. António dos Reis Rodrigues, antigo bispo auxiliar dos Cardeais D. Manuel Gonçalves Cerejeira e António Ribeiro para o sector das Forças Armadas e de Segurança, e mais tarde (em 1975) Vigário-Geral do Patriarcado de Lisboa, foi homenageado pelas Forças Armadas Portuguesas, tendo-lhe sido atribuída uma condecoração póstuma pelo Senhor Presidente da República (e na ordem da hierarquia, a segunda maior).
Dizem para aí que os tempos são de perdição, que ninguém respeita ninguém, que a Igreja é menorizada, que a comunicação social nos “come” ao pequeno-almoço…
Mas, afinal de contas, e “esta”?! E sou testemunha do que acabo de depor, em 14 de Julho de 2009, na Academia Militar (Aquartelamento da Amadora) …

Lisboa, 17 de Julho de 2009

D. Januário Torgal Mendes Ferreira
Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança
http://castrense.ecclesia.pt

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15/07/09

Lições de avós... em tempo oportuno

No último domingo deste mês de Julho – que muitos pretendem que sejam de férias, de descontracção e de menor exigência – ocorre o ‘dia nacional dos avós’, a 26. Embora seja domingo – por isso São Joaquim e Santa Ana são suplantados liturgicamente – podemos (e devemos) aproveitar a ocasião para abordar o tema dos avós, tantos social como religiosa e, sobretudo, espiritualmente.
Recordamos, por isso, uma breve estória – uma quase lenda do Alto Minho – para ilustrar a realidade dos nossos velhos, como categoria humana de sabedoria e de longevidade.
Era costume numas das terras do Soajo que, atingida certa idade, o filho mais velho pegasse no pai e o levasse ao monte para que este morresse longe de casa. Ora, um filho cumprindo a tradição, no dia aprazado, tomou uma manta e uma broa de pão e lá conduziu o pai para o monte à espera da morte.
O velho, cumpridor da tradição já para com o seu pai, deixou-se conduzir. Estava prestes a ser deixado no monte à espera da morte, quando rasgando parte da manta que o filho lhe levara para se cobrir, disse:
- Toma, meu filho, metade desta manta para te cobrires, quando te trouxerem também ao monte... como eu trouxe teu avô!
O filho reparou nos olhos lânguidos de seu pai... e não foi capaz de o deixar a morrer ali naquele ‘amaldiçoado’ monte!

Neste contexto do ‘dia dos avós’ deixamos – sem qualquer acusação – breves perguntas, talvez, inoportunas:
- Estamos a cuidar com dignidade dos ‘nossos’ velhos?
- Teremos sabido apreciar a sabedoria dos nossos/as anciãos/as, quais universidades intemporais de saber e de memória?
- Como vão os nossos critérios – sobretudo a partir dos valores cristãos mais básicos – de assistência aos mais velhos: com caridade ou como mera solidariedade?
- Até onde irá a capacidade de decisão política sobre matérias que envolvem os mais frágeis da nossa sociedade, que são os velhos: usámo-los em campanhas ou servimo-los com sinceridade de recursos e meios?
- Não estará a Igreja – mesmo na sua dimensão católica e nas mais variadas instituições e entidades – também a explorar os proventos dos mais fragilizados em vez de tentar criar condições para catapultar a gratidão... mesmo que seja só em forma de acolhimento?

Oração de avós e netos

* Avós
Por podermos ver ‘os filhos dos nossos filhos’,
no cumprimento da bênção em matrimónio,
- queremos agradecer-vos, Senhor, todos os dons que nos concedestes como sinal da vossa presença amorosa;
- queremos dar-vos graças, Senhor, pelo dom da vida, feito comunhão e esperança;
- ajudai-nos, Senhor a crescer na confiança pela ternura derramada em nós e à nossa volta.
Da experiência de vida com que fomos abençoados, pela comunhão de fé e em sintonia de caridade:
- queremos assumir, Senhor, a responsabilidade de velarmos pela concórdia da nossa família;
- queremos oferecer, Senhor, a nossa vida como testemunho de entrega aos outros;
- dai-nos, Senhor, um coração atento à construção da unidade familiar em nós e à nossa volta.

* Netos
Na presença de Deus e dos nossos avós, como netos:
- queremos agradecer-vos, Senhor, a força da vida neles manifestada;
- queremos reconhecer, Senhor, a segurança que os nossos avós nos transmitem;
- queremos entregá-los, Senhor, humildemente, à vossa protecção, hoje e para sempre.
Na presença dos nossos avós, diante de Deus e em Igreja, como netos:
- queremos retribuir, Senhor, a atenção daqueles que, de tantas formas, nos têm amado;
- queremos também, Senhor, cuidar deles com paciência, sobretudo quando as forças lhes começarem a faltar;
- queremos, Senhor, ter para com eles todo o respeito, dando-lhes ternura condigna.

* Avós e netos
Reconhecemos, Senhor, que, na nossa vida, mesmo sem disso nos darmos totalmente conta, tudo concorre para o bem daqueles que Vos amam.
Por isso, nos queremos comprometer, uns diante dos outros e todos diante de Vós:
- a colocarmos Jesus como centro da nossa vida, tanto pessoal como familiar;
- a vivermos centrados nos valores do Evangelho;
- a darmos testemunho de vida pela compaixão;
- a velarmos pela harmonia entre as gerações pelo respeito mútuo.

São Joaquim e Santa Ana
- rogai por nós.

A. Sílvio Couto

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13/07/09

Danos para terceiros: novo paradigma de prevenção

O consumidor de bebidas alcoólicas em excesso mais cedo ou mais tarde sofre as consequências do seu comportamento. É um dos casos em que a natureza nunca perdoa e castiga sempre. As atenções do público, dos vizinhos, familiares, governantes, prestadores de cuidados e defensores da moral têm girado quase exclusivamente à volta do chamado alcoólico. Para o deplorar, ajudar, condenar, tratar, desculpar o seu comportamento e os estragos de que se faz vítima com o seu beber descontrolado. A ênfase é posta nestas pessoas que se prejudicam com o álcool. Claro que a sociedade e os governos têm obrigação de as assistir; e elas têm obrigação de usar o seu resto de liberdade e responsabilidade para se ajudarem a si mesmas.
Há séculos que se insiste quase só nesta orientação.
Desde há poucos anos, e como que adaptando o paradigma da prevenção do tabagismo, se vem desenvolvendo o paradigma promissor de focar os danos para terceiros. Em reuniões europeias, inspirado no modelo tabagista, tenho proposto o conceito de “beber passivo” quando os danos dos que bebem recaem sobre os que não bebem. E são muitas as suas vítimas inocentes.
Quer se use a expressão de danos para terceiros quer a de danos para os bebedores passivos, a ênfase é agora posta cada vez mais nas vítimas do álcool, as quais não consomem.
Cada vez tem menos sentido que os bebedores de risco e de dano, muios considerados não alcoólicos, digam que se bebem e se prejudicam a própria saúde é com eles e ninguém tem nada com isso, como eu ouvi tantas vezes. A verdade é que eles não vivem sozinhos numa ilha. Muitos sofrem duramente mas fazem sofrer ainda mais os outros por causa do seu beber.
Nem adianta que as autoridades e os meios de comunicação omitam a presença de álcool dos agressores nas estatísticas de violências domésticas e outras como tentativa de lavarem dimensões sujas e sem ética do comércio das bebidas alcoólicas.
As tabaqueiras, durante longos anos também tentaram lavar os estragos do tabaco nos consumidores e nos fumadores passivos para não perderem lucros injustos. Só quando crescente número de defensores da saúde e do bem-estar dos cidadãos os foram desmascarando as coisas foram mudando e as tabaqueiras foram levadas às barras dos tribunais e obrigadas a indemnizar as suas vítimas.
Este novo paradigma de prevenção com ênfase nos danos do álcool para terceiros é muito recente e tarda em se afirmar em Portugal por falta de defensores das vítimas “secas” e indefesas do álcool; é contudo o paradigma mais promissor em relação ao espectro de perturbações fetais alcoólicas das grávidas; das vítimas domésticas e das vítimas rodoviárias do álcool. Também aqui estamos perante o bem comum de que fala Bento XVI na Caridade na Verdade.
Funchal, 13 de Julho de 2009
Aires Gameiro

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10/07/09

Uma vida que deixou marcas e continua a ser sinal

Foi em 1957. Já lá vão muitos anos. Um tempo de trabalho pastoral, em França, durante o mês de Agosto, para que o pároco de uma pequena cidade pudesse ter uns dias de férias, deu-me ocasião para ir em peregrinação a Ars. Uma aldeia pequena e pobre, cuja história é de um pároco humilde e santo.
Respirei ali a presença e a acção de um padre, simples e discreto, grande, como são sempre os santos. O seu rasto, que nunca se apagou, cento e cinquenta anos depois, ilumina agora mais. Entrou na história da Igreja como padroeiro dos párocos, título que não é de somenos. Agora, por decisão do Papa, o Ano Sacerdotal tem-no como grande referência a atender.
Templo, casa paroquial, tudo tão pobre, tão pequeno e tão humilde! Dizem-me, e assim leio, que, hoje, Ars já não é a pequena aldeia escondida na montanha. Recebe muita gente que vai no encalço do seu famoso “cura”, e dispõe de meios adequados para a acolher e albergar. Posso testemunhar agora que então não era assim.
Para um padre novo de vinte e sete anos, destinado a formar padres ao regressar a Portugal, foi muito importante palpar em Ars a pobreza de tudo, para perceber melhor a riqueza de uma vida que se gasta a servir os outros, por amor, para perceber que os obstáculos a andar para a frente estão dentro de nós. Não fora nem nos outros.
Tinha lido, com entusiasmo incontido, a biografia de João Maria Baptista Vianney, assim se chamava o Cura de Ars. A visita à que fora a sua paróquia, teve, por isso, um sabor especial. Uma peregrinação discreta, que deixou marcas. Andei pelas mesmas ruas, rezei na igreja paroquial, onde ele rezou, celebrou e foi confessor, horas sem conta, entrei na casa, onde viveu, guardada como no seu tempo e embelezada apenas com a baixela da maior pobreza, ouvi gente que trazia no coração o padre que alimentou a fé de seus avós e trouxera a Ars gente de toda a França à procura de perdão e de paz.
São assim os santos que nem sabem que o são, porque não perdem tempo a olhar para si. Todo o tempo é pouco para contemplar, serenamente, o rosto de Deus e para escutar, com o coração, apelos vindos de todo o lado. E, mais ainda, os apelos de muitos para quem o padre antes era indiferente, mas que, depois, já não dispensável, amigo e sábio conselheiro, com o seu irresistível fascínio e o seu jeito de acolher, compreender e amar.
Volto de novo a ler e a saborear, com calma e tempo, “ O Cura de Ars” de Francis Trochu, uma obra premiada pela Academia Francesa. Releio com novo gosto, ao mesmo tempo que recordo os párocos que foram passando na minha vida, ao longo dos anos, e foram deixando, também eles, sinais de zelo generoso e de santidade a toda a prova. Cabouqueiros silenciosos de muitas vidas cristãs, heróicas e consistentes, moldadas pelo Evangelho por eles testemunhado, e capacitadas assim, para traduzirem a força e a riqueza da sua fé, muitas vezes no meio de dificuldades e incompreensões.
No dia 4 de Agosto celebra-se a festa litúrgica do santo Cura de Ars. Jamais me esqueço nesse dia, e noutros se tal se proporciona, de indagar dos cristãos presentes, se alguma vez se lembraram de agradecer a Deus os padres que passaram e estão passando nas suas vidas e de lhes dar lugar na sua oração. Não faltam surpresas. E, caso mais raro, gestos de gratidão e fé, para recordar sempre, como o daquela velhinha que me dizia que rezava todos os dias pelos padres que, em nome de Deus, lhe absolveram os seus pecados durante a vida.
O padre é, normalmente, mais criticado do que amado. Sobre ele recaem mais exigências que gratidão.
O Ano Sacerdotal deve ajudar os cristãos a serem mais fraternos com os seus padres. O padre não existe para si. Guarda consciência que sempre cairão sobre ele olhos de exigência. Mas olhos que o estimulem. A sua vida e a sua história interfere na vida e na história de muitos jovens e adultos, que no padre amigo encontraram um rumo que os dignifica e os torna úteis aos outros.

António Marcelino

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03/07/09

Pecado original (3)

Os comentários que tenho ouvido na sequência do texto publicado na Agência Ecclesia/Opinião em 8-I-09, e que em boa parte foram referidos na nota publicada no mesmo local em 18-II-09, mostram as incertezas actualmente existentes a propósito da doutrina sobre o pecado original.
Fazendo caso a quem dizia que já era hora de recordar essa doutrina, pareceu-me que seria oportuno ver como o Papa Bento XVI fala dela à mentalidade actual – o que fez na sua catequese dedicada a São Paulo, na audiência geral da quarta-feira, no dia 3 de Dezembro do ano passado.
Na Carta aos Romanos 5, 12-21, S. Paulo confronta Adão com Cristo, para afirmar que, se o pecado de Adão prejudicou a humanidade, o dom da graça de Cristo restaurou-a superabundantemente. “Onde, porém, abundou o pecado, superabundou a graça” (Rom 5, 20). Por isso, Bento XVI recorda que na consciência da Igreja o dogma do pecado original está inseparavelmente relacionado com o dogma da salvação em Cristo.
(Poder-se-á dizer também que S. Paulo, ao ver que o próprio Deus se fez homem e sofreu a morte na cruz para salvar o homem, compreendeu o abismo a que conduzira o pecado de Adão?)
O Papa sabe que, hoje, muitos pensam que não faz sentido a doutrina de um primeiro pecado que depois se teria difundido em toda a humanidade; e, por conseguinte, também não seria necessária a Redenção e o Redentor. “Portanto, existe ou não o pecado original?”
O que não se pode negar, “o dado empírico, é que existe uma contradição no nosso ser. Por um lado, todo o homem sabe que deve fazer o bem e intimamente até o quer fazer. Mas, ao mesmo tempo, sente também outro impulso para fazer o contrário, para seguir o caminho do egoísmo, da violência, para fazer só o que lhe apraz, mesmo sabendo que assim age contra o bem, contra Deus e contra o próximo. São Paulo, na sua Carta aos Romanos, exprimiu esta contradição no nosso ser assim: "Quero o bem, que está ao meu alcance, mas realizá-lo não está. Efectivamente, o bem que quero, não o faço, mas o mal que não quero é que faço" (7, 18-19). Esta contradição interior do nosso ser não é uma teoria. Cada um de nós comprova-o todos os dias. E sobretudo vemos sempre ao nosso redor a prevalência desta segunda vontade. Basta pensar nas notícias diárias sobre injustiças, violência, mentira, luxúria. Vemo-lo todos os dias: é um facto”.
Este impulso ou inclinação para o mal é tão real e contrasta com a inclinação natural para o bem, que Pascal chegou a falar de uma “segunda natureza”. “Esta contradição do ser humano, da nossa história, deve provocar, e provoca também hoje, o desejo de redenção. E, na realidade, o desejo de que o mundo seja mudado e a promessa de que será criado um mundo de justiça, de paz, de bem, está presente em toda a parte: na política, por exemplo, todos falam desta necessidade de mudar o mundo, de criar um mundo mais justo. E precisamente isto é expressão do desejo de que haja uma libertação da contradição que experimentamos em nós próprios”.
Por conseguinte, o facto do poder do mal no coração humano e na história humana é inegável. A questão é: como se explica este mal? Na antiguidade, falava-se de que o homem provinha de dois princípios originários opostos: um princípio bom e um princípio mau. Na visão ateia, supõe-se que o próprio ser tem em si desde o início o bem e o mal.
“A fé (cristã) diz-nos que não há dois princípios, um bom e um mau, mas há um só princípio, o Deus criador, e este princípio é bom, só bom, sem sombra de mal. E por isso também o ser não é uma mistura de bem e mal; o ser como tal é bom e por isso é bom ser, é bom viver. É esta a boa nova da fé: há apenas uma fonte boa, o Criador. (…) O mal não provém da fonte do próprio ser, não é igualmente originário. O mal vem de uma liberdade criada, de uma liberdade abusada”.
“Como foi possível, como aconteceu? Isto permanece obscuro”, diz Bento XVI. E não se demora a analisar como é que o primeiro homem, criado bom, cometeu o mal; nem como o seu pecado passou para toda a humanidade. Limita-se a recordar o dado da fé: o homem pecador foi curado quando Deus entrou pessoalmente na história, com a crucifixão e ressurreição de Cristo. Testemunhas disto são os santos.
Se desejávamos mais explicações, podemos pelo menos recolher o que Bento XVI recorda da doutrina da Igreja: que todo o homem nasce com uma inclinação interior para o mal que é muito forte, devida ao pecado de Adão, que não pode ser superada pelas suas próprias forças, mas somente pela graça de Cristo.


Viseu, 28-VI-09
Pe. Miguel Falcão
miguelfalcao@hotmail.com

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Ao Compasso do Tempo

Que valor têm, em nossos dias, a vida, a família, os sonhos, o bem-estar, a saúde, a promoção cultural, a felicidade, a paz…?
Têm valor e rosto estas entidades, por vezes máscaras distantes, por outras, sempre ansiadas?
O que vale o dinheiro e o depositar em bancos de honra ou em instituições do mesmo género, mas onde se perdeu a nobreza de ser direito?
O que vale hoje? Vale tudo? Ou nada vale?
A propósito desta floresta de valores, contava-me há dias um casal, de bastantes anos percorridos, a sua estupefacção quando, em diálogo com casais muito mais novos, deles escutaram exclamações e criticas. Os mais jovens estavam admirados pelo “velho” casal não possuir o que para eles era estritamente necessário! Como era possível viver-se só com um automóvel, quando eles, de geração recente, exigiam dois? E como explicar que se contentassem com um só aparelho de televisão? E viviam serenos e felizes os mais velhos, só com uma casa? E a outra habitação de fim-de-semana?
O que “vale”… é ter dois carros (já agora, mais um jipe, que também carro é…), 3 aparelhos de TV, mais um palácio ou um “tugúrio” de mudanças de ares, ao fim de cada uma das sextas-feiras…
Não me admira que na sondagem (valham o que valem as ditas) apresentada esta semana: “Dez anos de Valores em Portugal (Público, 30 de Junho), o maior valor para os portugueses seja “ser rico”, “dar a vida por alguém”, em primeiro lugar, pela sua família (o que correcto é; só é de admirar que outras razões, tais como salvar a vida a alguém, morrer pela sua pátria ou por uma causa política não sejam tão sedutoras como ambiciosas…) e a “Paz” continua um valor bem alto, mas abstracto, deixando para trás os condimentos imprescindíveis para se viver aquela realidade (sem justiça, sem liberdade, sem honra, sem harmonia social… nunca haverá paz).
“Um dia teremos de construir um mundo totalmente novo. E quanto mais delitos e horrores se derem, mais amor e bondade teremos de oferecer em contrapartida, sentimentos que temos de conquistar dentro de nós. Podemos sofrer, mas não podemos sucumbir” (Etty Hillesum, Cartas, Lisboa, Assírio Alvim, 2009).

Lisboa, 03 de Julho de 2009

D. Januário Torgal Mendes Ferreira
Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança
Leitura semanal dos problemas do Mundo e da Igreja
http://castrense.ecclesia.pt

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Uma tensão natural, mas superável

Sociedade complicada, esta em que nós vivemos. As relações pessoais são sempre o espaço em que as complicações mais se acentuam e as tensões ganham maior relevo.
Não devia ser assim, quando se trata de pessoas adultas, embora com idades diferentes. A roda da vida, para todos inexorável, não deixa que os mais velhos esqueçam as atitudes de quando eram ainda pouco amadurecidos e reagiam a ordens e conselhos, e aos mais novos, não deve passar despercebido que a juventude é tempo que se escoa depressa. rápida.
A convivência de idades diferentes permite a todos uma permuta de dons e de experiências, que enriquece mutuamente, mostrando que valemos e podemos mais, quando juntos e unidos, abertos e aceitantes da complementaridade.
O poder decisivo, hoje, está, na sociedade e, em muitos aspectos, também na Igreja, cada vez nas mãos dos mais novos. É verdade que, sobretudo nas empresas, ser mais velho para determinadas funções e tarefas, pode logo acontecer aos quarenta anos. Assim se atende mais a aspectos considerados de rendimento profissional, esquecendo-se que a rentabilidade não se traduz apenas em dinheiro. Há gente válida e capaz, aos milhares, desempregada por encerramento de empresas. Logo vê como se lhe torce o nariz ao procurar trabalho. Já tem cinquenta anos! Um país que quer continuar pobre.
Diz-se que o poder corrompe, novos e menos novos. Assim, há chefes mais novos, bem vestidos e engravatados, orgulhosos com seus diplomas e títulos, com atitudes que magoam, empobrecem a relação e mostram que são fruto de uma suficiência tola que não quer conselhos e apoios de ninguém. Também não faltam chefes mais idosos com a presunção de que ninguém lhes ensina nada. O “cresce e aparece”, ou “o seu tempo passou” ainda são atitudes mais frequentes do que se julga.
A Igreja, com a normal coexistência de gerações diversas na orientação das suas comunidades, procura acautelar as boas relações entre os padres, chamando a atenção para os valores de cada idade, esforço de compreensão, mútua aceitação, colaboração concreta, trabalho em equipa, comunhão de bens, deveres de hospitalidade, partilha de trabalhos, promoção de iniciativas que evitem o isolamento. Como procura que abram os olhos à participação dos leigos, com seu valor, experiência e trabalho realizado.
O problema tende a agravar-se no clero, onde a pirâmide de idades se inverte com o aumento dos mais idosos. Se não se exprime, visivelmente, a comunhão entre todos, não se caminha na colaboração mútua. Há, em todo o país, padres muito novos e pouco experientes e padres muito idosos e cansados a presidir a grandes comunidades. Um título canónico não garante, automaticamente, capacidades de liderança e sabedoria de decisões. Na aceitação mútua, a colaboração exprime-se e enriquece. Este testemunho, tomado a sério, pode servir de estímulo para outros sectores da sociedade. O tempo não é de novos ou de velhos. É de todos. É preciso, na Igreja e na sociedade, estar atento para que ninguém presente, se torne invisível ou ausente. As prateleiras não são lugar para arrumar gente, nem se podem promover pessoas, marginalizando outras pessoas. Até no seio da família e das relações familiares, se o saber e a experiência, vivida e sofrida, dos mais velhos, não lhes dá direito a ter opinião e a encontrar corações abertos para a ouvir, a família acabou. E muitas vão acabando, apesar das casas a dar nas vistas.
Estamos em tempo de acolhimento, não de desperdício, muito menos de pessoas. Não basta respeitar, quando se aparece. É preciso dar apreço sempre. Há causas que nunca deixam livres aqueles, hoje mais velhos, que por elas sofreram e lutaram. Não podem agora ser mendigos das migalhas que caem da mesa do poder. Elas continuam suas.
É essencial que ninguém se sinta a mais na família, na sociedade e na Igreja. Todas são pátria comum, espaço de vida, lugares de permuta e colaboração. Em todas o amor é lei.

António Marcelino

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