Frutos e Sementes de D. Manuel Falcão
Faleceu há poucos dias D. Manuel Franco da Costa de Oliveira Falcão, bispo emérito da Diocese de Beja. Se, para muitos cristãos, o desaparecimento físico deste prelado é assunto que diz apenas respeito aos diocesanos do Baixo Alentejo, para quantos no nosso país costumam lançar um olhar atento sobre o mundo e sobre os homens que o habitam e melhoram a partida deste “pescador de homens” não os deixou indiferentes.
No segundo mais extenso bispado português (e também no Patriarcado de Lisboa, onde foi bispo auxiliar), os méritos deste antigo engenheiro serão recordados de forma poliédrica, dada a importância do trabalho pastoral que desenvolveu. Entre os restantes portugueses, se a justiça não for completamente cega, deixará memória duradoura enquanto promotor pioneiro de uma prática consequente de conhecimento, salvaguarda e divulgação do património religioso nacional.
Ao fundar, em 1984, o Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, poucos anos depois de tomar posse plena desse território cristão, o panorama não era animador, para não dizer aterrador:
“[…] Diversas igrejas jaziam ao abandono, devido ao desinteresse ou à míngua de recursos, enquanto outras eram alvo de intervenções pouco criteriosas que afectavam a integridade material e cultural tanto da arquitectura como dos bens móveis nela integrados. Em certas circunstâncias, ainda se procedia à venda de obras de arte existentes nas paróquias como uma forma de obtenção de fundos para a reparação do telhado ou para a aquisição de um órgão electrónico. Ao mesmo tempo, várias imagens seculares eram confiadas a ‘curiosos’ que as pseudo-restauravam com purpurinas e tintas plásticas ou partiam para reparações em oficinas de santeiros do Norte, voltando desfiguradas ou substituídas por réplicas. A questão dos furtos tornava-se também acutilante com a presença de antiquários e coleccionadores no terreno que aliciavam tanto os sacristães a venderem como os delinquentes locais a roubarem. E, com o pretexto do abandono, alguns serviços estatais e autárquicos começavam a promover a incorporação nas suas colecções de objectos que se sabia pertencerem à Igreja.”
Estas palavras – saídas da mão de José António Falcão, director do Departamento então criado, onde se mantém até aos nossos dias – não descrevem, infelizmente, factos exclusivos de uma única região portuguesa. O quadro encontrado por D. Manuel correspondia ao que se podia observar um pouco por todo o país, mesmo em zonas a que nunca se poderia colar a etiqueta (cómoda) da “descristianização precoce”, como se tem feito em relação ao distrito de Beja. Como refere aquele historiador da arte no catálogo da exposição “Rosa Mystica – Nossa Senhora na Arte do Sul de Portugal”(Regensburg, 1999-2000), “Tal como sucedia em muitas outras áreas do país, a Igreja ainda não tinha despertado então – pelo menos no tocante a uma sensibilização alargada das comunidades – para a necessidade de defender os seus valores com todas as consequências que isso implicava.”
O bispo de Beja teve a coragem de pensar de maneira diferente. Tal atitude, movida por clarividência ousada, concretizou-se na acção de uma equipa formada sobretudo por leigos comprometidos, que desde aí tem sabido olhar para o património histórico e artístico religioso como um fenómeno teológico, filosófico, antropológico e sociológico abrangente e revelador. Pastor enraizado e conhecedor profundo das suas ovelhas e da história delas, revelando um entendimento inteiro da paisagem, do povoamento e das suas tradições espirituais, D. Manuel não se limitou a delegar competências, mas soube acompanhar e estimular a descoberta, a inventariação, a salvaguarda e a divulgação de múltiplas manifestações de um património material e imaterial que é muito mais do que um simples conjunto de “bens culturais”. Por detrás da sua acção directa e indirecta esteve a consciência de que a Memória e a Criação, concretizadas em História e Arte, não são apenas fenómenos humanos, ainda que superiores, mas manifestações de um devir e de uma Transcendência que nos leva a Deus. Nos seus fundamentos esteve ainda a assunção de que a Ética e a Estética não devem ser separadas nem na preservação do património histórico e artístico nem no acolhimento que é preciso dar às manifestações válidas da nossa contemporaneidade. Consciência e acção parecem ter sido as sementes lançadas à terra portuguesa por D. Manuel Franco Falcão – e que tão bons frutos têm dado na prática multiplicada e multiplicadora do Departamento por ele criado. O trabalho vem sendo reconhecido dentro e fora de portas – sinal de que não tem sido feito em vão.
Nenhuma semente, contudo, se prolonga no tempo se não partilhar os seus genes. O trabalho do bispo de Beja poderia ter ficado confinado às (largas) fronteiras da sua diocese. Tal não parece ter acontecido. Embora lentamente, um pouco por todo o país as sementes vindas da antiga Pax Iulia começaram a dar origem a novas plantas. São ainda frágeis, é certo, mas o Espírito Santo não as deixará fenecer. Onde, antes, algumas Comissões de Arte Sacra mandavam esculturas a Braga, a Fátima ou à casa de “habilidosos” (e de lá vinham estrábicas, com estranhos e desajustados olhos de vidro, com cabeças novas, sem a policromia original; ou de lá não vinham, porque regressavam apenas em cópias nem sempre fiéis), há agora regulamentos de intervenção rigorosos – ainda que a sua aplicação plena se veja prejudicada pela extensão territorial e pela falta de acolhimento de leigos inteligentes, conhecedores e comprometidos. Onde, antes, se demoliam igrejas seculares ou se deitava para o lixo (ou para as mãos de compradores de velharias e antiguidades) peças únicas só porque não caíam no goto de Comissões Fabriqueiras, de Irmandades, de beatas ou de párocos, há agora uma sensibilidade acrescida e, a pouco e pouco, mais atenta e respeitadora.
Será ainda pouco – mas Roma e Pavia não se fizeram num dia. O exemplo de D. Manuel não terá sido a única semente (lembro, por exemplo, o trabalho meritório que tem desenvolvido o Secretariado para os Bens Culturais da Igreja), mas não seremos justos se não dissermos que – por caminhos tortos ou direitos – o bom trabalho de Beja, visível até fora de portas, serviu de adubo ou de água que fez rebentar vontades adormecidas, consciências acomodadas. Seja como for, teve um efeito de bola de neve, que a emulação, em muitos casos, estimulou.
O filósofo francês Henri Bergson defendeu sempre que a memória não consiste num regresso ao passado, mas na entrada de uma herança infinita no presente de cada um de nós, tornando-o livre das necessidades da existência e elevando-o até uma vida projectada no futuro, enquanto Esperança. D. Manuel Franco Falcão terá percebido a importância desta doutrina, concretizando-a numa obra exemplar. Isso lhe devemos e deveremos. Isso lhe deve e deverá Portugal.
Ruy Ventura
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