Família em crise ou crise da família?
Administração e economia de valores
Como ponto de partida para reflexão, vem-nos à memória a tese, defendida por um economista, do casamento como fenómeno despido de fundamentos éticos/morais/religiosos, para dar lugar a um conceito basicamente económico: o contrato matrimonial e, por isso, a família, existe e subsiste enquanto for economicamente vantajoso para cada um dos seus membros, realçando assim a eficiência económica do casamento e da família que por este se constitui.
Ainda em sede de sínteses do ano que findou, foi noticiado que o ano de 2011 assistiu a um decréscimo do número de divórcios, fato que, em concordância lógica com aquela tese, foi relacionado com a situação de crise financeira que as famílias portuguesas experienciam, como resposta das mesmas à necessidade, num contexto de crise, de aproveitamento dos recursos económicos, evitando a dispersão de meios com agravamento de custos individuais.
O sobreendividamento das famílias é uma realidade nacional, e uma realidade da qual as próprias famílias (só) agora, postas a descoberto pelo contexto da crise financeira, da dívida soberana e do euro, tomaram consciência: disso é cabal manifestação o crescente número de apresentações de pessoas singulares à insolvência que a atividade judiciária revela e que, no ano de 2011, ultrapassou o número de processos de insolvência de pessoas coletivas.
Quer se entenda como um risco natural da economia do mercado associada à expansão do mercado de crédito, quer se enverede pela teoria da responsabilização do devedor como alguém que se excedeu (ressalvadas circunstâncias imprevisíveis, como o desemprego ou a doença), o dito sobreendividamento teve e tem como efeito, inevitável, a redução, senão mesma privação, das disponibilidades financeiras a que as famílias se (auto)habituaram, coadjuvadas então pela massiva publicitação e quase venda forçada do falacioso crédito fácil (com reduzida ou mesmo nula análise de risco e, por isso, alienada da capacidade de endividamento do mutuário).
Esta realidade, de cariz económico-financeiro, produz imediatamente problemas sociais; na sua maior profundidade, quando faz perigar a subsistência condigna e o acesso à educação e à saude.
Mas outras realidades sociais sobressaem. As alterações forçadas no habitual – ainda que a crédito - nível de vida material induzem à exclusão do convívio social e também familiar dos sobreendividados que, afastados do mercado de crédito e do mercado de bens e de serviços a que acediam e frequentavam, se colocam ou são colocados à margem dos padrões, espaços ou níveis que até aí partilhavam - diga-se, em boa verdade, numa coexistência circunstancial do acaso, centrada na materialidade das coisas, independentemente da sentida felicidade por elas proporcionada, desprovida, a mais das vezes, do sentido do dar e receber próprio do conceito de partilha (não vamos mais longe: o que é que tantos pais, mães, filhos, e até avós, fazem, reunidos, num sábado ou domingo à tarde, dentro de um centro comercial?, em busca da pílula dourada da felicidade?).
Confrontadas com a impossibilidade de manterem e prosseguirem o estilo de vida que para si (e para os outros) vinham hasteando, desponta e cresce o desânimo, a falta de autoestima, sentimentos negativos com forte pendor destrutivo no plano individual e que, qual doença contagiosa, se propaga à família – pais e filhos -, acabando por influenciar negativamente a capacidade e a vontade de reorganização financeira e profissional da pessoa e da família que com ela se constitui. O desânimo conduz ao isolamento, à ausência de esforço, aspirações e projetos de vida.
Num raciocínio de silogismo, somos então levados a concluir que as famílias estão fragilizadas pelo isolamento em boa medida em consequência da sua viciação nas propostas e ofertas de um consumo para satisfação de desejos imediatos, despidos de projeções no futuro.
Da repetição de comportamentos para a habitualidade, e desta para o comodismo reivindicativo de pretensos direitos adquiridos, facilmente se caiu – e assim nos encontramos - na faliciosa construção da perca de status como fator de risco para a dignidade humana assim concebida - consumista, imediata, de facilidades adquiridas, num contexto de multiplicação de necessidades artificialmente criadas, à margem do originário projeto da evolução qualitativa do homem (a escravidão sem realização).
Naturalmente que todos temos consciência que aqueles não são os ingredientes para a construção ou reabilitação do futuro. É tempo então para reflexão, uma que afaste os sentimentos de miserabilismo, comiseração e fatalidade que tende a enraizar-se, até porque se assim pensarmos, assim nos convencemos, e temos instalada a depressão nacional.
No plano da imediatez das soluções, a apresentação à insolvência representa, para os que assim se dispõem, ao aliviar da (de)pressão – muito (mas muito) mais do que a satisfação dos interesses dos credores, visa promover a reabilitação do endividado, desde logo como agente económico. O chamado fresh restart, alcançado pelo perdão das dívidas que permanecem por cumprir depois de esgotado o património do devedor e de decorrido um determinado período de provação (5 anos).
Importaria então por em prática e em toda a linha todo o conteúdo que ao fresh restart pode imputar-se, encarando o sofrimento pessoal e coletivo como a febre denunciadora de um mal sistémico e corrosivo que se impõe corrigir, tratar, curar, pela diferença de comportamentos, de atitudes, de revitalização dos valores que justificam a humanidade. Muito mais do que pelas medidas exógenas que nos são impostas, importaria evitar a repetição do fenómeno, sobretudo pela mudança que vem de dentro, construída em cada família e por ela alargada à sociedade enquanto célula que a sustenta.
E quanta esperança no futuro se razões houvesse para assumir que a redução do número de divórcios radica já nessa mudança, da família como núcleo de afeto e solidariedade gratuita – na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza – e não meramente assente em princípios económicos racionalistas e individualistas!
Amélia Rebelo
Juiz do Tribunal do Comércio | Comissão Justiça e Paz (Aveiro)
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