Jornais da Igreja e horizonte eclesial
Há 42 anos, o Bispo do Porto, ao tempo D. António Ferreira Gomes, rebaptizou o jornal da diocese, que se intitulava “A Voz do Pastor”, para lhe chamar “ A Voz Portucalense”. Pretendeu dizer que queria que o jornal diocesano fosse uma voz da Igreja do Porto ao serviço da formação e informação de todos, e não simplesmente a voz do Bispo da Diocese.
O jornal ganhou novo fôlego, alargou o seu horizonte para além do templo, passou a falar mais da vida e daquilo que o Evangelho lhe dizia. Multiplicaram as assinaturas pelo país e, de norte a sul, o jornal era esperado, lido com interesse e comentado pelo seu conteúdo. Os temas significavam o modo novo de a Igreja estar, ver e falar à sociedade. Poucos assuntos do templo, mais assuntos da vida e da sociedade a interpelar os cristãos e a abrir caminho para os que ainda pensavam a Igreja como coisa de padres e de ritos religiosos. Assim se foi vendo que a Igreja, pela sua missão profética e humanizadora, tinha algo de novo a dizer e tinha de o saber comunicar. Por isto, devia ser capaz de escutar, observar, ler e comunicar a partir da vida, dos problemas e dos projectos das pessoas e da sociedade.
Os jornais diários eram das grandes cidades. Os pequenos eram os jornais da província. Alguns destes ligados a pessoas ou a grupos de interesse local. Sempre muito lidos pela gente que já sabia ler e, também, pelos nossos emigrantes na Europa e nas Américas. Com os pequenos jornais se fomentou a proximidade com as pessoas e com as populações. Uma proximidade que se estendeu até aos de mais longe, que viam no jornal da sua terra uma maneira concreta de manterem com ela contacto e interesse pelo que ali se passava. Os jornais eram, normalmente, mais regionais que religiosos, mesmo os de instituições da Igreja. A sua publicação constituía uma maneira concreta de servir as populações. A Igreja foi pioneira, embora não única, junto dos emigrantes e das populações, nesta atenção aos problemas das comunidades locais, por meio dos seus órgãos de informação.
Acontece, porém, pelo modo como se entendia a acção evangelizadora tradicional e porque havia outros jornais regionais a preocupar-se com as notícias da terra, aos jornais da Igreja, dirigidos normalmente por padres, era-lhes mais fácil tratar temas religiosos e dar notícias dos actos cultuais das paróquias. Sem a leitura da vida e a reflexão que a mesma exige, muitos jornais se foram assim tornando “jornais do templo”. Menos sensíveis às mudanças na vida das pessoas e das comunidades, ficaram assim menos capazes de fazer uma leitura cristã da realidade, descurando o modo de apresentar o Evangelho, como uma luz e uma força na ordenação da sociedade. Alguns jornais da Igreja passaram a ter menos leitores, a ser indiferentes aos não praticantes e inócuos, pelo seu contributo, à promoção das pessoas, das comunidades e dos valores morais e éticos, cada vez mais esquecidos e vilipendiados. Alguma imprensa regional da Igreja, porém, pelo seu profetismo e coragem de denúncia, incomodou muito os revolucionários de Abril, que a classificavam como uma intoxicação das populações e um travão da revolução. Um pequeno jornal, “O Amigo do Povo”, sempre corajoso e directo, fez engolir fogo e sapos vivos a muitos abrilistas.
Passam-me pelas mãos muitos jornais da Igreja. E, também, outros jornais regionais, mais noticiosos que opinativos. Não me parece, em muitos casos, uns e outros serem capazes de gerar opinião criteriosa, demarcarem-se das guerrilhas locais e interessarem os leitores por outros horizontes, libertos do trivial.
Voltando, porém, aos jornais da Igreja, sinto que muitos deles ainda não encontraram o perfil de uma voz válida para os tempos que correm. Ou são meramente regionais, ou cheios de religião e de eclesiásticos, mesmo em zonas que fervilham vida. Artigos para encher espaço, por vezes a dizer pouco mais que nada, notícias sem interesse que outros jornais repetem. Muitos deles, apenas com uns pingos de religião explícita, vão-se ficando pela informação do que se passa no templo. Não se vê por ali especial atenção à vida das pessoas, às mudanças sociais e culturais, aos sinais dos tempos, para que se lhes possa dar sentido e resposta. Artigos, que se pretendem de inspiração cristã, tombam para uma religiosidade tradicional, que pouco ou nada diz do mundo plural, político e religioso, onde vivem os cristãos, às suas opções legítimas, ao modo de ser corajoso e profético em relação aos problemas actuais. Há, a diversos níveis, um esforço, para formar e ajudar a evoluir os responsáveis pelos órgãos de comunicação. Vêem-se alguns resultados, menos do que seria de esperar. As pessoas em causa, mormente quando são padres, depressa se tornam oficiais de mil ofícios, e recorrer a leigos preparados, ainda não é prática frequente, o que é pena.
O Vaticano II, em documentos conhecidos, empurra a Igreja para fora do templo. Porém, o peso do religioso e do cultual ainda impede que se diga e comunique com outra linguagem, capaz de acordar os de dentro e fazer com que os de fora entendam a Igreja e a sua missão no mundo. Há passos que se podem dar já, como desclericalizar, o mais possível, a comunicação na Igreja. Outros serão mais lentos, mas não impossíveis. É questão de se tomar a sério o papel da comunicação social, de ver os seus meios como mediadores necessários de evangelização, de se encontrar gente preparada e aberta para os orientar. Há aí exemplos bons neste sentido. Mas se nada muda e depressa, então tudo vai mudando para um inútil sem qualquer significado.
D. António Marcelino
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