Jornal de Opinião

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21/02/11

Vítimas (visíveis) do abandono... familiar, social e desumano

Desde há duas semanas que, quase diariamente, é notícia o achamento de idosos falecidos – há mais ou menos tempo – ou caídos em casa, em estado de decomposição ou descobertos após dias de desaparecimento... numa espécie de espectáculo onde as figuras mais degradantes estão fora do palco, em surdina e encapotadas pela ineficácia nos cuidados – materialistas, hedonistas e anónimos – com que tentam cuidar, sobretudo, dos mais velhos.

É preciso, efectivamente, chorar sobre o leite derramado, pois é deste desastre que todos podemos e devemos colher as lições mínimas em atenção às respostas máximas!
Diz-se que há cerca de quatrocentos mil velhos sós e/ou abandonados, no contexto português, tanto no quadro rural como na incidência urbana. Entretanto, vêem-se pulular lares e asilos (este termo foi banido da linguagem, mas continua azedo na mentalidade) por tudo quanto é lado, praticando preços exorbitantes e, nem sempre, aliando custo à qualidade. No entanto, muitos outros velhos vão ficando esquecidos ou marginalizados pela ocupação laboral de familiares que, muitas vezes, se tornam, para com eles como abutres ou, no mínimo, sangessugas.
Estes episódios mais recentes têm criado uma onda de quase de histerismo colectivo. Por estes dias li uma nota na internet: ‘Vaga incontrolável de arrombamento de portas de casas de pessoas desaparecidas porque não postavam nada no facebook há quinze minutos’. Explicando esta atitude dizia-se até que alguns dos que viram a casa arrombada e isso aconteu no intervalo em irem à procura daqueles de quem não tinham notícias ‘só’ há quinze minutos.
De facto, estas notícias devem-nos fazer pensar. Tentaremos deixar breves anotações, sem pretendermos dizer tudo e muito menos querendo esgotar o assunto, pois ele é assaz complexo.

= Do sempre contactável... à sensação de desprezo
Hoje é normal as pessoas terem horror à solidão, ao silêncio e, sobretudo, ao abandono, seja consentido, seja tolerado ou mesmo imposto pelas circunstâncias da vida e do relacionamento entre as pessoas. Numa espécie de exposição frenética, as pessoas têm a tendência a falar de si mesmas sem o mínimo pejo de vulgarizarem ou de dizerem de si mesmas mais do que aquilo que seria desejável. Quantas vezes ouvimos conversas na rua – pois as fazem ao telemóvel enquanto caminham, sem resguardarem o que dizem – que seria preferível não saber. Por vezes, quase somos tentados a pensar que aquilo que é dito não terá interlocutor, pois se assim fosse algo de mal estaria nessa cultura de fachada...
Cresce, por outro lado, o número dos sós, dos isolados, daqueles/as que talvez tenham por companhia a televisão ou, se mais actualizados, a internet... com uma certa comunicação impessoal e, quantas vezes, suficientemente, anónima... para atrair a confiança, a partilha ou mesmo o convívio entre pessoas que se conhecem, que se estimam ou que se respeitam.
Parece que estamos prestes a bater nofundo da desumanidade, na medida em que entramos mudos e saímos calados, em que quase ninguém repara em nós nem nos vê como pessoas que têm rosto – alegre ou triste, amargurado ou contente, choroso ou perfumado – perdendo-se a noção de história e de memória, pessoal, familiar, social e colectiva.
De facto, somos, cada vez mais, um número – repare-se na mais recente lucubração do ‘cartão do cidadão’ – com algumas cambiantes (outros números utilitários), que interessam a quem nos governa, mas que, depressa se perceberá, que perdemos a capacidade de sermos para além da utilidade e com um cada vez mºenor prazo de validade, senão na duração, pelo menos na intenção.
Registe-se a preocupação de certas forças e instituições em denunciarem este abandono, mas com algumas dificuldade iremos inverter este processo, pois é galopante a descristianização... e, sem Deus, tudo será mais fácil reduzir(-se) à matéria orgânica... viva ou morta.
Urge, por isso, recriar a mentalidade de vizinhança. Urge implementar uma nova força de proximidade. Urge abrir os olhos e ver quem, afinal, pode precisar de nós, hoje.

António Sílvio Couto
(asilviocouto@gmail.com)


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