Jornal de Opinião

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22/02/10

Casamento?

A questão do casamento dos homossexuais tem sido apresentada como um “direito” conquistado por uma longa luta pela liberdade de ser diferente. Curiosamente, o casamento entre pessoas de sexos diferentes nunca se considerou como “direito” mas antes uma opção de vida ancestralmente fundamentada na lei biológica de conservação das espécies, regulamentando direitos e deveres de quem decide iniciar um projecto comum de partilha e vida conjunta. Ao contrário, entre pessoas de sexos diferentes, mais difícil e socialmente menos respeitado até há pouco, era a opção de vida conjunta sem casar.

Antes do mais, acho que o Estado nada tem que ver com as questões do foro íntimo das pessoas, sobretudo no que toca à sua moral e à forma como vivem a sua sexualidade. Do mesmo modo nada tem que ver com as convicções e a maneira como as pessoas as sentem e expressam. A invasão do privado pelo Estado e a sua obsessão regulamentadora ancora-se na invocação da salvaguarda de direitos mas a verdade é que ao Estado pouco importa o respeito pela individualidade mostrando-se sempre mais empenhado em garantir uma tributação que o favoreça enquanto vai espalhando os seus tiques uniformizadores.

Dois amigos, um grupo de amigos não unidos por nada de sexual, podem decidir ter um projecto de vida comum e partilhar o mesmo espaço. Aconteceu e acontece com certas comunidades de cariz religioso ou sociológico. É aceitável que, assim sendo, mereçam ter um enquadramento fiscal e jurídico adequado a essa realidade e se partilharem bens comuns deve existir a salvaguarda legal dos direitos respectivos.

Dois seres humanos do mesmo sexo podem amar-se, decidir ter um projecto de vida comum e devem ser respeitados pelo estado e pela sociedade, merecendo tolerância e enquadramento no plano dos direitos e benefícios. Mas dessa relação pode resultar um casamento? O que entendemos então por casamento? Apenas um contrato regulador do relacionamento entre duas pessoas que partilham o mesmo lar?

Na maneira como o vejo, o casamento é mais que uma relação sexual, é mais que uma relação afectiva, é até mais que um projecto de vida comum em partilha. Tudo isso, com diferentes modalidades e sem necessitar envolver sequer o plano dos afectos, pode ser enquadrado na figura da coabitação .

Tal como o vejo, o casamento é uma relação que supõe complementaridade biológica, ontológica e antropológica tendo como fim último a criação duma família. Esta é a única definição de casamento que a humanidade adoptou ao longo de milénios, apesar de épocas em que, como agora, a prática da homossexualidade era tolerada.

O casamento é feito por dois seres diferentes que se complementam biologicamente (não é preciso definir o óbvio...) mas que se complementam também ontologicamente já que a sua natureza é diversa sendo da fusão desses cambiantes que nasce algo de diferente e novo. O casamento implica ainda uma complementaridade antropológica uma vez que homem e mulher transportam um património diverso, com diferentes formas de agir e sentir o mundo e as coisas. Partilha e dádiva de amor, que nasce da intimidade entre um homem e uma mulher, o casamento é criativo pois da complementaridade nasce um homem e outra mulher diferentes e dos dois pode florir o nascimento duma família e frutificar no nascimento de um novo Ser Humano. É isto o casamento, partilha e complemento de um homem e uma mulher tendo como fim ultimo a criação duma família. A família é uma escola de valores, uma âncora e um abrigo essenciais ao desenvolvimento integral do Ser Humano para a felicidade. A complementaridade homem-mulher é o pilar essencial dos equilíbrios que estão na base da família. Sabemos que existem muitos modelos de famílias resultantes dos vários encontros e desencontros entre os seres humanos. Não obstante, o modelo nuclear pai-mãe-filhos continua a ser o modelo inspirador e gerador de equilíbrios.

É para todos evidente que o casamento está em crise e é interessante tentar compreender porquê. Na sociedade individualista e hedonista em que vivemos, o espaço para a partilha e a dádiva sem contrapartida, o espaço para o exercício da compreensão e da tolerância está cada vez mais limitado. A ruína destes valores aproxima-nos da derrocada do modelo civilizacional em que vivemos mas os princípios fundadores ainda existem e uma nova sociedade solidária, tolerante e compassiva pode emergir se assim quisermos. A crise do casamento não é mais que a crise da sociedade. A formalização do casamento dos homossexuais adquire neste contexto ainda maior estranheza e suscita ainda maior incompreensão. Nada acrescenta à reflexão da crise de valores e ao contrário aprofunda a sua decadência.

Qualquer tipo de relação deve ser tolerada, mas em minha opinião não tem que ser casamento. Qualquer tipo de coabitação, pode ser enquadrada no plano jurídico e financeiro mas não tem que ser casamento. O Estado tem o dever de respeitar a diferença mas respeitar a diferença não é torná-la oficial, fazendo dos diferentes iguais; respeitar a diferença, é manter diferente mas aceitá-la como tal, sem qualquer perseguição ou discriminação. Aceitar a diferença é exercitar a tolerância e não regulamentá-la.

Tenho pelos homossexuais o mesmo respeito que tenho por qualquer outro ser humano. Nem menos, nem mais. Defendo para eles, como para todos os homens, o acesso à felicidade sem constrangimentos. Por isso, estou convicto que esta medida legislativa na aparência “libertadora”, ao institucionalizar o que apenas devia ser respeitado no exercício da liberdade intima de cada um ignora o verdadeiro direito à diferença e promove a caricatura de uma instituição milenar que nem por se encontrar em crise perdeu já a sua importância fundadora do modelo de civilização que é ainda a nossa.

No que devia ter sido um confronto de ideias sobre esta temática, prevaleceu o silêncio. Onde devia ter havido a contribuição criadora de diferentes formas de pensamento, prevaleceu o vazio. A incapacidade para definir o casamento, distingui-lo da coabitação mesmo que entre pessoas que partilhem a intimidade, varreu políticos de pacotilha, tardo-revolucionários e putativos pensadores. A mediocridade dos
argumentos foi a regra e a pressa arrogante com que os que deveriam representar a nação decidiram sobre uma temática tão fracturante é um muito preocupante sinal de como alguns interpretam hodiernamente a democracia.

Uma sociedade que não consegue sequer conhecer a sua identidade, descobrir as raízes e reconhecer princípios e valores dificilmente conseguirá traçar rumos e encontrar os caminhos do futuro. Em nome da liberdade, promovem-se caricaturas da liberdade. Provavelmente não é por mal e é isso o mais preocupante: provavelmente é por não entender.

Victor M. Gil, Médico, Professor Universitário

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