Páginas de um diário
Ao Compasso do Tempo - Crónica de 27 de Novembro de 2009
1. Bem sei que os nervos me aturdiam a cabeça e as palavras, sem escolha, eram setas a flagelar o outro. Lembro-me de chamar à atenção para o facto de um mediador de uma crise é sempre um mergulhador, a quem podem retirar o oxigénio… ou como alguém a atravessar a rua, sob a iminência de ser derrubado pelo primeiro veículo.
Não admira a humilhação a que fui sujeito. Acossado, ferido, incompreendido, só porque saí à rua para tentar as pazes entre um homem e uma mulher. E “nisto” de reconciliação, descobri uma característica bizarra: ao fim do conciliábulo (tentativa subtil e respeitadora, por palavras, em ordem a que um amor desarvorado em ressentimento e até ódio, voltasse ao estádio primeiro) rebentou a tempestade costumeira… Quem se faz caminheiro de desventuras, tem de apanhar na cara um pedaço dessas discórdias para aprender com a experiência. E acrescento mais uma característica, a entrar no álbum… da possível “canonização” minha: as famílias dos dois lados, esquecendo agravos e humilhações entre aquela mulher e aquele homem, voltaram-se contra quem ousou entrar nesse santuário profanado, acusando-o de tomar a sério os folguedos de duas crianças adultas…
Afinal, eu fui o único a sentar-me no banco dos réus. “Bem feita”. A paz dependia deles… e não de mim.
2. Não entendo nada do que clamam para aí a respeito da justiça. Sinto-me escandalizado, por minha inexperiência. Se um julgador não sabe do ofício ou tem medo de o exercer, como alimentou a esperança de que haja uma solução para o frenesim?
Como é possível o desacerto entre oficiais do mesmo tema e orquestrações públicas de desconfiança?
Ninguém se entende… ou alguns já se mostraram opostos ao entendimento de outros. É natural a diversidade de opiniões. Já não o é a hostilidade (e a recriminação).
No seu tempo, os representantes de instituições tão sólidas garantiam, pelo seu exemplo, a tranquilidade desejada.
Bem razão tinha o Senhor Dr. Gaspar, recordando a sua Faculdade de Direito e de Teologia, da velha Coimbra, quando à mesa, comentando diferendos da época, algum de nós propunha: “Haja quem nos governe”. E lá vinha o comentário, em resposta: “Mas bem”…
E “isto” de leis pode ser alterado com a facilidade da mudança de roupa, consoante a estação? E se nos calha um dia, o causídico que definia, nestes termos, a sua função: a mim não me compete defender a lei. Ao contrário. Procedo sempre em ordem a que a lei seja adaptada para garantir o descanso ao meu constituinte (SIC)”. E esta!
3. O Arcebispo de Dublin exprimiu, na televisão, a sua vergonha diante do acontecimento de sacerdotes abusadores sexuais de crianças, pelo atentado a essas crianças, ao sacerdócio e a Deus. Em todas as matérias da vida, não são consentidas ambiguidades ou meias palavras. Há sempre justificações para o crime. Repudiar este, sem nunca nos excluirmos da responsabilidade, é um acontecimento de rara limpidez moral. Nunca as vítimas podem ser abandonadas!
4. Ao reler “No presbitério e no templo”, vol I, Lallemant Frères, Imprensa, Lisboa, 1884, do célebre Padre Senna Freitas, sublinho a apreciação de Camilo Castelo Branco. “O snr. Senna Freitas nobilita o clero português e honra as letras pátrias. Se não fosse a palavra religião, quem explicaria tão obscura vida em tão alumiado espírito?”
Esse “alumiado espírito” de tantas “obscuras vidas” esteve presente, a grande altura, na “Semana Social” em Aveiro, da responsabilidade da Conferência Episcopal Portuguesa. Remodelar a sociedade, ousando respostas para desmandos e tristezas (de desempregados e excluídos) é um encargo de primeira linha. Mas, em Aveiro, muita gente faltou.
Lisboa, 27 de Novembro de 2009
D. Januário Torgal Mendes Ferreira
Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança
http://castrense.ecclesia.pt
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