Os espaços públicos são de todos
A propósito da polémica sobre a presença de símbolos religiosos nos espaços públicos, despoletada por um caso surgido em Itália e que mereceu um pronunciamento do tribunal europeu dos direitos do homem, em boa hora o programa "As Tardes da Júlia", da TVI organizou um pequeno debate sobre este tema, no dia 10 de Novembro, para o qual fui convidado a participar.
O que é que havia eu de dizer, e perante uma opinião pública, convencida da verdade universal constitucionalmente consagrada do princípio da laicidade do Estado? Pois foi precisamente questionar a constitucionalidade deste princípio. Que o princípio da laicidade do Estado seja defendido por alguns, trata-se de um direito do cidadão ou dos cidadãos que se associem, como eu tenho o direito de ter uma visão cristã do mundo e da sociedade, dentro da comunidade católica a que pertenço. Mas já não é legítimo exigir que o Estado e a sociedade sejam laicos, como se não houvesse lugar para os outros, para outras expressões, para outras visões do mundo!... É por conseguinte questionável, a partir de um princípio particular, - neste caso o da alegada laicidade do Estado - exercer pressão sobre o Estado e exigir, como é este o caso, a retirada dos símbolos religiosos, cristãos ou outros, das escolas, num processo que, a não ser contrariado, pode levar a exigir a retirada de todos os símbolos religiosos de todos os espaços públicos (pois espaços públicos não são apenas as escolas e os hospitais ou a prisões), o que representaria por absurdo exigir a total destruição do mundo… Um autêntico fim de mundo, um tsunami humano, cultural e civilizacional!...
Eu podia ir para a televisão fazer um choradinho!..., lamentar-me dos tempos modernos, que já não são como aqueles nos quais me criei, onde os espaços públicos (e os tempos) eram marcados pelo ritmo da liturgia cristã…, o toque dos sinos, às Trindades!... Não, decididamente não. O que fiz foi levantar a dúvida sobre a constitucionalidade do princípio da laicidade do Estado e dos espaços públicos. E como na altura não tinha tido tempo para investigar melhor a situação, baseei-me, para fundamentar a minha intuição, no que tenho ouvido de Mário Soares e de Jaime Gama, que falam não de um estado laico, mas sim de um Estado de direito democrático. Também pensava que, se, na última revisão constitucional, de 2005, foi retirada a afirmação da orientação para o socialismo, com certeza que não iria consagrar outro princípio – o da laicidade do Estado -, que condicionaria o sentido da lei fundamental. E por isso defendi que, a estar certa a minha intuição, é inconstitucional o que se faça ou defenda em nome do princípio da laicidade, que é certamente muito respeitável para alguns, mas não seguramente obrigatório para todos.
E a minha intuição era verdadeira. Fui ler a Constituição da República Portuguesa que diz, no seu art. 2: "A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa". E mais adiante, no art. 41 § 4 consagra o princípio da liberdade religiosa e da separação entre o Estado e as Igrejas: "As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto".
Em todo o texto da Constituição não se encontra nenhuma referência nem a "laico" nem a "laicidade". Fui consultar outras Constituições. A mesma referência ao "Estado de Direito democrático" encontra-se na Constituição do Brasil e também na Constituição Espanhola. A Espanha, que não é uma República, mas uma monarquia constitucional, rege-se pelo mesmo princípio de um Estado de direito democrático. E o mesmo com certeza se encontrará nas outras constituições europeias e no Tratado de Lisboa: vivemos na Europa civilizada de Estados de direito democrático.
Portanto, o princípio da laicidade do Estado não está consagrado na Constituição, e por isso não se pode na sua base defender que os espaços públicos em Portugal são laicos; os espaços públicos em Portugal são espaços de convivência democrática de um Estado de direito, abertos e pertença de todos.
Por isso, toda a polémica em torno dos crucifixos nas escolas ou nos hospitais ou em todos os espaços públicos, a partir do princípio da laicidade do Estado não tem suporte constitucional. A Concordata do Estado Português com a Santa Sé, que regula as relações do Estado com a Igreja Católica, e a lei da liberdade religiosa, que regula as relações do Estado Português com as religiões e as confissões cristãs não católicas são expressão de um Estado de direito democrático, e não, como alguns pretendem, a expressão da laicidade do Estado.
Quanto às escolas e aos hospitais, eu defendo que não só os crucifixos não devem ser retirados como devem ser repostos, de onde foram retirados, e agora acompanhados de outros símbolos religiosos (e mesmo laicos), e que possam coexistir em sã convivência no mesmo espaço público que é de todos.
O Natal aproxima-se: ele é essencialmente cristão. Que seja um tempo em que os nossos espaços públicos se iluminem, mas que este ano a luz que brilhou uma noite em Belém resplandeça sobre as nossas cidades e os nossos campos, e possa ouvir-se, nas cidades e nas serras, nas cidades e nas aldeias a voz dos anjos que a todos os homens de boa vontade anunciaram, nos campos de Belém, aos pastores que tinha nascido num presépio um Menino, que a todos trazia a paz: Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade, aos homens que Ele ama!...
José Jacinto Ferreira de Farias, scj
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