Deus Omnipotente
Mamã, conta-me uma história.
Não, essa não; essa também não; a do soldadinho de chumbo. Mamã, leva-me ao jardim, quero ver as borboletas. Oh! Não gosto desse lanche! Quero chocolate no leite. Hum! Afinal quero o leite sem chocolate.
Manuela, com um doce sorriso a tudo aquiescia, prontamente. Nunca tinha um momento de impaciência, uma palavra, ou um gesto, que denunciassem a sua fadiga. O marido notava-lhe a palidez do rosto e as olheiras fundas, que lhe circundavam os olhos, e sugeria-lhe uma emfermeira, para que tivesse um pouco de descanso. Mas Manuela abanava a cabeça. O seu lugar era ali, junto do filho. Rodeado dos seus carinhos, não sentiria tão profundamente, a desdita de ter que viver amarrado áquela horrível cadeira de rodas. Nascera tão perfeitinho, o seu Paulo, mas seis anos depois, uma queda desastrosa, paralisara-lhe as perninhas rosadas. "Não voltaria a andar," haviam-no dito os médicos, peremptóriamente, mas Manuela, apesar da sentença proferida, alimentava a esperança, baseada nos seus sentimentos religiosos, de voltar a ver o seu filhinho a andar. Sempre que lhe era possível, encerrava-se no oratório e rezava com fervor, diante das imagens dos santos da sua devoção. Dispensava-lhes particulares cuidados: limpava-as carinhosamente do pó, substituía as flores das jarrinhas, mesmo quando ainda estavam viçosas, e vigiava o azeite da lamparina para que esta se conservasse sempre acesa. Nelas depositava toda a sua fé e encontrava o bálsamo para a sua dor, que ali expandia sem reservas, deixando verter as lágrimas contidas. Um dia, porém, sucedeu o que ela nunca prevera. Levantara-se muito cedo e de mansinho, dirigira-se à salinha destinada à oração. Ao abrir a porta o que viu deixou-a estupefacta. Todas as suas imagens estavam partidas! A gravura emoldurada de uma santa, que havia muitos anos pendia daquela parede, caíra, ocasionando tão grande destruição! Pobre Manuela! Intensificou-se-lhe a palidez do rosto. Trémula, apanhou alguns pedaços de faiança, espalhados por toda a parte, as flores que jaziam junto às jarras, feitas em cacos, e a lamparina, finalmente, apagada. Tomada de uma terrível sensação de desamparo, de vazio, de desespêro, deixou-se cair numa cadeira, chorando convulsivamente. Quanto tempo teria ficado entregue áquele desânimo, se o chilrear dos pardais a não tivesse chamado à realidade?! Amanhecia. Paulo não tardaria a acordar e a reclamar a sua presença. Levantou-se, olhou através das vidraças e instintivamente, como se buscasse conforto, no belo quadro da natureza que se lhe oferecia e em que tanto se sentia todo o poder do seu Autor, abriu as portas que davam para o terraço, transpondo-as a passos vagarosos. A aragem fresca e perfumada daquele dia de Primavera, que vinha a despontar, envolveu-a numa carícia. olhou a imensidade do mar, que brilhava aos primeiros alvores da madrugada, o arvoredo verdejante que se erguia à sua frente. Levantou os olhos ao céu, que clareava, e assim permaneceu algum tempo, contemplando o firmamente, para além do qual estava Deus Omnipotente, Aquele que criara o mundo e tudo o que nele existe, O Eterno. E movida de súbito, por um profundo sentimento de confiança, n'O que também é todo mesericórdia e amor, ajoelhou-se e pediu pelo filho, elevando a voz magoada que, pouco a pouco foi deminuindo de intensidade, extinguindo-se por fim. Caída em êxtase, Manuela deixara de ver e ouvir o que se passava em seu redor, só a voz de Paulo a arrancaria ao seu arrebatamento. Caminhando para ela, com o rosto radiante de felicidade, estendia-lhe os braços exclamando: - mamã, mamã, olha para mim, vê como eu ando! O Sol nascera deslumbrando toda a terra, porém mais resplandecente ainda, fora aquela luz bendita, com que Deus iluminara a alma de Manuela...
Susana Maria Cardoso
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