Viver a quaresma: A poda, as estacas, a rega e o ermitão
O abade andava triste, desanimado. Parecia-lhe que tinha feito tudo para renovar os mosteiros. Os monges não andavam menos. Poucos mantinham esperança.
Tinha feito e mandado fazer investigações históricas sobre a vida do fundador e belas palestras sobre elas. Já não havia segredos nesses escritos. Tudo ficara esclarecido com datas, autenticidade dos textos e credibilidade dos autores. Muitos dos monges tinham participado. Tinha feito tudo para adaptar a vida dos mosteiros e dos monges à sua guarda aos tempos e ambientes actuais, à vida moderna da Igreja. Tinha pago uns milhares largos a empresas para inquéritos e campanhas vocacionais. Até tinham acorrido alguns pretendentes que se iam indo embora. Alguns monges estavam contentes com a vida e as actividades, mas a maioria ia ficando desanimada e abatida. Também ia entrando mais mundanização. Uns apoiavam outros lamentavam.
Apesar de todo o esforço de renovação os monges iam envelhecendo e morrendo antes que outros professassem para os substituírem. As clausuras iam ficando sempre mais vazias e algumas já fechadas. O desânimo do abade levou-o a redobrar de oração insistente ao Senhor a pedir luz. Alguns monges, poucos, acompanhavam-no.
Tanto orou que teve um sonho: “Vai falar com o ermitão”. “Vai falar com o ermitão”.
Seria para ele? Não era ele um abade sábio? Na noite seguinte de novo a voz.Pôs-se a caminho da montanha. Sabia que lá cima vivia um velho de barbas dado à oração. Nunca tinha acreditado na sua sabedoria. Mas agora tinha que ir.
Na gruta onde o velhote de barba deveria estar não encontrou ninguém. Espreitou por todo o lado no interior da gruta e não viu nada que lhe desse indícios da competência de quem lá vivesse. Nem livros, nem os meios modernos e as técnicas. Só viu a Bíblia muito gasta e um genuflexório na capela. No horto, ao lado da entrada da gruta, viu alguém a cuidar do jardim e das árvores de fruta. Abordou-o receoso. Seria aquele o ermitão sábio, o ancião contemplativo? Não parecia mas pelo sim pelo não murmurou quase envergonhado: “posso falar-lhe? Os meus mosteiros vão mal, estão a ficar sem monges, estão a morrer. Tenho feito tudo para o renovar mas parece que não dá certo. Não me poderia dar um conselho?”.
O ancião sem desviar a atenção do seu trabalho, continuou a pôr uma estaca numa árvore por estar um pouco torta, a podar outra por ter rama demais e a regar uma terceira porque estava a murchar pela seca. Fazia tudo com muita calma; demorou tempo imenso. E o abade à espera. Por fim virou-se para o abade e disse: “pode, estaque e regue”; e voltou ao seu trabalho sem dizer mais nada.
O abade esperou, esperou, olhou para os passarinhos que por ali esvoaçavam e chilreavam, mas nem mais uma palavra ouviu do ermitão até que decidiu descer a montanha, cabisbaixo, triste, a reflectir no que ouvira. Não atinava no seu sentido.
Nessa noite sonhou com o ermitão a repetir: “poda, estaca, rega”.E pareceu-lhe ouvir bem claro: “para darem fruto o meu Pai poda as árvores, põe estacas nas defeituosas, rega as já podadas. Assim elas não dão só rama, crescem direitas e resistem aos ventos e enterram as raízes na humidade”.
Acordando do sonho, o abade teve a luz do que faltava na renovação dos mosteiros, monges e pretendentes. Era muito simples e fundamental: falta a ascese penitencial da poda, a disciplina continuada das estacas, a rega da oração e dos sacramentos frequentes. Caiu na conta de que não basta investigar e saber as fontes da espiritualidade dos fundadores. Afinal, e bateu na testa, tudo isso está em Cristo e nas suas palavras, e foi esquecido. E lembrou-se de um dito dos seus mestres: as virtudes tem-nas quem as pratica como os fundadores as viveram.
Fátima, Quaresma de 2010
Aires Gameiro
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