Jornal de Opinião

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13/03/10

Esperança

Ai! de nós, se não fosse a doce esperança, que nos ajuda viver! Cada um lá tem a sua, quantas vezes infundada, que guarda ciosamente bem dentro do coração. E, enquanto vive na feliz expectativa, viável ou não, de realizar determinados ideais, a cruz que carrega torna-se mais leve, pois de quando em quando,refugia-se nos seus sonhos, evadindo-se à realidade, por vezes, tão amarga!...

Os pobres têm esperança de melhorar a sua situação. Ainda há pouco aquele operário, servente de pedreiro, de regresso a casa, da obra onde trabalha, parou olhando para a montra da papelaria que lhe fica no caminho. Não sabe ler nem escrever, mas lá os números conhece muito bem, e também sabe que se chamam cautelas áqueles papelinhos expostos na vitrine. Podem dar centenas de euros; o que é preciso é ter sorte...De vez em quando lá compra um, e nos dias que se antecedem à extracção, sonha com o que faria se o destino o favorecesse. Poisou no chão a maleta em que levara o almoço; bem, almoço é um modo de dizer, não poderá chamar-se almoço, ao pedaço de pão com azeitonas e ao golito de vinho que se perdera na garganta seca, que constituíra a sua refeição do meio -dia. Contou o dinheiro que ainda lhe restava. Bem, ficaria praticamente sem nada, mas tinha o suficiente para comprar um número. Essa extravagância custar-lhe-ía o sacrifício de não utilizar, durante alguns dias, qualquer meio de transporte até à obra onde trabalhava, que ficava muito distante da sua barraca. Mas seriam tantos e tão lindos os sonhos que teceria pelo caminho, que este, embora longo, tornar-se-ía curto. Entrou na loja e pediu uma fracção. Lembrou-se da mulher cheia de privações, com o corpo moído do trabalho, que tanto ralhava com ele por ter aquele fraco de jogar de vez em quando. Ah! mas se lhe aparecesse em casa com um par de arrecadas, e lhas atirasse para o regaço, dizendo: - Pega lá mulher, olha que é ouro de lei! - Então ficaria muda de epanto, e arrependida das suas censuras. Pobre Ermelinda, quando de ligara a ele, levava umas bem bonitas nas orelhas! Mas depois, vieram os filhos, as dificuldades e lá se tinham ido os brincos, que era mais preciso pão. Pagou a cautela e guardou-a muito bem dobradinha dentro da bolsa, agora quase vazia, e retomou o caminho de casa. Aquele dia fora como os outros,extremamente fatigante. Carregara baldes de cimento, de tijolos, de areia, de entulho, de pedras, eu sei lá! Ai! se a sorte o bafejasse, nunca mais se sujeitaria áquilo. Compraria o indispensável para ele, para a Ermelinda e para os três rapazes, e iria direito à aldeia onde nascera. Adquiriria um pedaço de terra, construíria ele próprio uma casinha e cuidaria do que era seu, deitando sementes à terra, e regando-a com o suor do seu rosto.
Esperança, sonhos, ilusões?! Mas enquanto esperava o que talvez jamais se realizasse, era-lhe menos duro o seu viver.

Também tem esperança a Tia, a Tia que não casou; que pela força de determinadas circustâncias, se viu obrigada a consagrar a sua existência aos irmãos mais novos e aos sobrinhos. A Tia que nunca amou nem foi amada, contudo que vigiou os amores dos outros, que ajudou a fazer os enxovais, que teve preocupações com véus de noivado. A Tia que não teve filhos, mas que ultrapassou as mães, nos seus extremos de ternura; que se inclinou sorrindo sobre nem sei quantos berços, e embalou nos seus braços, os pequeninos seres, rechonchudos e rosados, que lhe eram confiados, cantando docemente; - dorme, dorme, meu menino...Mas sentindo quantas vezes, o frio e o vazio de nenhum dos meninos que embalava, ser na verdade seu. Passaram os anos, uns após outros, sem que a tia, disso se apercebesse. Surpreenderam-na os primeiros cabelos brancos, as primeiras rugas, abrindo já, os seus longos e profundos caminhos. Então, frente ao espelho, reconhece que está velha. Recorda os sonhos da adolescência, bruscamente interrompidos, para se entregar a uma realidade cheia de rersponsabilidades e preocupações. Duas lágrimas, muito suavemente, rolam-lhe pelas faces descoloridas. Mas, apesar desses momentos de desânimo, há sempre uma hora de esperança, um instante de ilusão. Basta, por vezes, o chilrear de uma ave, um raio de sol, o azul dos céus, a doçura da Primavera. E então, a Tia, esquecida da imagem que o espelho reflecte quando nele se contempla, pensa no amor. Abandona as agulhas de "tricot". Reclina a cabeça e sonha, enquanto murmura:- Quem sabe? Quem sabe se ainda um dia...
Que a Tia viva em sonhos, o que a realidade lhe negou...

Para além das paredes severas e frias, de um hospital, onde reina o sofrimento, onde se perdem gemidos dolorosos, onde se vertem lágrimas difíceis de conter e se soltam profundos suspiros de tédio, também ali, embora a alguns custe a crer, a esperança, qual raio luminoso, penetra. Lá vem um medicamento que atenua o sofrimento, o sorriso confiante de um médico que exclama: - Isto é mesmo assim... Mas há-de melhorar...- Um afago de uma enfermeira que aconchega a roupa e ajeita a almofada, e a esperança muito de mansinho, abeira-se do leito do paciente e instala-se-lhe, por momentos no coração dolorido e ele pensa, cerrando os olhos cansados: - Talvez não volte a ter outra crise; talvez que de hoje em diante, comece a melhorar...Ah! se me apanho bom...Quando sair do hospital...Quantos planos para esse dia, esse dia em que lhe seja dada alta, planos que, quantas vezes, nunca virá a realizar. Mas aquela feliz expectativa, mesmo vâ, ajuda-o a sofrer.
Esperança bendita, que força misteriosa encerra! Que bálsamo milagroso contêm! Donde virá? Quem a enviará? Foi Deus que a criou, porque afinal, esperança, o que é, senão fé?!

Susana Maria Cardoso

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